DESASTRE CLIMÁTICO | CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE

Carlos Eduardo Ribeiro Jr. | sex-feira – 25 de dezembro de 2020

Há vários anos com iniciativas e ações onde são prioritários procedimentos e práticas de enfrentamento ao desastre climático em todas as suas inciativas e ações, a RPPN Mato da Onça formaliza seu estado de Emergência Climática na expectativa de sensibilizar a sociedade e promover alguma reação em favor do enfrentamento do problema.

A situação que temos no Baixo São Francisco não é uma exceção ao trato com nosso patrimônio natural, sobretudo a água, com nossos rios. Não podemos ficar na [eterna e desacreditada] espera de alguma sinalização ou engajamento da parte da União, Estados e Municípios, pois não acreditamos que virão, em curto prazo, para nossa região: paisagem, água, patrimônio natural, mudanças de modo de vida, não são uma prioridade de nossa sociedade; talvez no futuro, em situação mais próxima a algo como um colapso que provoque o desespero coletivo. Por tal razão decidimos deixar público um padrão de conduta por nós adotado há muitos anos, antes da criação da RPPN Mato da Onça, no alto sertão alagoano, uma das seis UCs – Unidades de Conservação do trecho baixo do Velho Chico.

Na RMO – Reserva Mato da Onça, como é conhecida, o envolvimento no enfrentamento ao desastre climático não é de agora. Antes de sua criação, atividades desenvolvidas no Sítio Barra do Riacho (hoje anexo da RMO), tais como a recuperação de fragmentos de caatingas, da mata ripária do pequeno afluente do Velho Chico, o riacho do Mato da Onça, a recuperação de solo e o restauro do dossel vegetal (para abaixamento de temperatura e criação de microssistema agroflorestal para produção de alimentos orgânicos) de caatingas, reuso de água, conservação de energia, produção de biomassa, eram intensivas e classificadas como prioritárias.

Na zona ripária, o compartilhamento do espaço natural em associação com a mata nativa, em fase final de recomposição, após vários anos, garante a segurança alimentar. Foto: Carlos E. Ribeiro Jr. | Canoa de Tolda

As espécies nativas das caatingas, como o xique-xique, possibilitam, além de alimento para bicho e gente, a possibilidade de produtos de alto valor em diversos mercados. Foto: Carlos E. Ribeiro Jr. | Canoa de Tolda

Os resultados positivos na área piloto do Sítio Barra do Riacho podem ser observados ao percorrer os cerca de 1.000 m³ da área próxima ao rio que, inteiramente degradada quando da aquisição da propriedade, há quase vinte anos, teve seu restauro bem sucedido. É visível, em comparação com outras localidades, o adensamento da cobertura verde em toda a zona marginal tanto do São Francisco como do pequeno riacho intermitente onde, com temperaturas e umidade relativa bem mais favoráveis do que as áreas de vizinhos do entorno, temos uma boa produção de hortaliças e frutos variados garantindo alimentação farta e saudável não só para humanos mas também para a diversa e crescente fauna que frequenta o local. Afinal, bicho do mato também quer paz, sombra, água e comida boa.

Com a instalação da RPPN Mato da Onça ( o processo foi iniciado em meados de 2014 com a portaria de criação publicada em outubro de 5015), as experiências do Barra do Riacho foram avaliadas, corrigidas, ampliadas, sistematizadas e adotadas para a UC que hoje é a primeira RPPN de Alagoas e do Baixo São Francisco a ter seu Plano de Manejo aprovado antes do prazo legal de cinco anos a partir da decretação da RPPN, o que não é uma virtude, mas um compromisso assumido quando assinamos o termo de adesão e enquadramento na legislação para a criação da Reserva.

É importante observar que dentre os diversos itens/componentes da gestão determinados pelo Plano de Manejo, a maior parte está inserida no contexto dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável sacramentados pela ONU, algo aparentemente óbvio, porém necessário de estar, de nossa parte, claramente compromissado no plano de gestão da RMO. A tentativa de realização dos projetos da RMO, infelizmente, são impactadas pela gestão temerária, suicida dos territórios e regiões vizinhos onde, de forma não inocente, matas estão sendo transformadas em zonas peladas há dezenas de anos, lixões se acumulam em todos os municípios e mananciais de água (em muitos casos, únicas fontes possíveis de água para inúmeras comunidades) são relegados à condição inaceitável de acumuladores de águas servidas e contaminadas.

Em Porto da Folha, SE, um monumental lixão,  eterno como neves andinas, parece não ser um problema.  Foto: Carlos E. Ribeiro Jr. | Canoa de Tolda

Também em Porto da Folha, no povoado Lagoa da Volta, a única fonte de água perene, que poderia inclusive ser um belo local para lazer, há anos não passa de recebedora dos esgotos da localidade.  Foto: Carlos E. Ribeiro Jr. | Canoa de Tolda

Na UC fazem parte do dia a dia a conservação da água – com seu reuso – e de energia, com emprego de sistema fotovoltaico para bombeamento de água e iluminação de benfeitorias. Padrão adotado para uso de energia elétrica em prática na gestão da UC é objetiva reduzir a demanda a um consumo mínimo de KW/hora/pessoa, em contrapartida à alegada justificativa de “atendimento da demanda” – sem qualquer plano nacional a longo prazo de adequação à oferta de água para a geração – defendida inflexivelmente pelo sistema elétrico como elemento a legitimar a furiosa geração de hidro energia a qualquer custo: a começar pela destruição dos rios. Estabelecemos como uma de nossas prioridades a busca de autonomia energética com a ampliação do atual sistema fotovoltaico e a implantação futura de pequenos aero geradores com tecnologia bem simples, sistemas que podem, sem problemas, ser replicáveis na região.

Um bom exemplo da pressão do uso da energia elétrica é a situação de altíssimas temperaturas na região do semiárido. Seja em zona urbana ou rural, a impressão que temos é que árvores são seres detestados: “sujam o chão com a folhagem…” “prejudicam a iluminação noturna e a rede elétrica…”; “deixam os carros sujos e fica esse ajuntamento de passarinho, morcego e inseto…”.  O resultado é uma crescente supressão e, obviamente, a elevação de temperaturas para patamares insuportáveis. Uma das soluções encontradas é a instalação de aparelhos de ar condicionado, que surgem  em casas de todas as classes. Não há políticas públicas onde o controle e baixa da temperatura seja emergencial. Em nosso caso, já enfrentado há muitos anos, temos nossa sede muito fresca, rodeada daquilo que chamam de mato por todos os lados, onde o padrão de temperatura é comprovadamente mais confortável do que o verificado em localidades e residências vizinhas. Também insetos ficam entocados no mato, pois não há uso contínuo de iluminação externa (quando há alguns anos o pessoal do Luz Para Todos veio instalar a rede, ficou indignado por recusarmos – com muita insistência, tem que ser dito – a instalação de luminárias nos postes, pois “como esse povo vai viver no pardo num lugar perdido desse?”). Sim, na RMO a regra é a escuridão, muito obrigado. A visão noturna fica apurada. Para a iluminação geral são utilizados sistemas individuais de pequenas luminárias com leds e células solares que possibilitam a distribuição da iluminação quando, onde e na intensidade que forem necessárias, com a vantagem da mobilidade.

Quanto ao uso de combustíveis fósseis, também organizamos e restringimos nossa rotina de deslocamento, sobretudo por água, onde ainda dependemos de lanchas com motorização de popa completamente obsoleta, poluente e barulhenta. Nossas embarcações estão com os dias contados, pois estamos desenhando dois protótipos de embarcações de trabalho: um catamarã de oito metros com propulsão elétrica, e um trimarã de carga, de cerca de dez metros, a vela, pois é inadmissível o desperdício de ventos constantes, frescos, em todo o Baixo São Francisco. Nossa movimentação no presente – a pandemia naturalmente impõe restrições – foi reduzida mínimo necessário, já que produzimos parte do que está em nossa mesa, permitindo o distanciamento entre as necessárias (ainda) idas até a cidade para necessidades inadiáveis. Está muito claro para nós que a segurança alimentar deve se aplicar, de modo estrutural, ao modus vivendi de enfrentamento do desastre climático, quando possível, pois permite uma outra dinâmica de movimentação, além de baixar o custo de uma série de despesas que vão sendo agregadas ao dia a dia.

Com os níveis de contaminação e óbitos advindos da Covid-19 voltando ao crescimento, a Reserva Mato da Onça permanece fechada, não temos alternativa. As fontes de renda vindas de visitantes e produção de mudas nativas (quem tinha encomenda, cancelou; quem iria encomendar, desapareceu, o que configura a falta de iniciativas em curso para recuperação de caatingas, sendo o viveiro da Reserva um dos dois únicos da região, além daquele que a CHESF tem em Piranhas, AL) está completamente suspensa. A espera por um quadro que possibilitará a vinda de visitantes para conhecer a UC, sua flora, sua fauna, observar o céu noturno do mirante do alto do morro ainda será bem longa, não temos dúvidas. Foram tomadas opções e investimentos foram feitos, sendo que as pegadas pretas e amarelas da Trilha de Longo Curso Velho Chico, que atravessa a RPPN com várias ramificações em sua poligonal (é o segmento do Caminho dos Canoeiros), são símbolos indicadores de alternativas de conservação da biodiversidade e geração de renda através turismo de natureza, talvez uma das mais interessantes opções de atividade econômica para a região: há caminhos ainda possíveis para uma vida de bom senso na superfície deste planeta.

As aulas na sala de aula do juazeiro, onde é provocada da percepção da paisagem, do mundo real, foram e, quando a Reserva for reaberta, voltarão a ser uma das bases de atividades.  Foto: Carlos E. Ribeiro Jr. | Canoa de Tolda

Com a Trilha de Longo Curso Velho Chico, cujo segmento Caminho dos Canoeiros atravessa a RPPN, uma ótima possibilidade de alternativa de melhoria de renda integrada à conservação de nossa biodiversidade.  Foto: Carlos E. Ribeiro Jr. | Canoa de Tolda

Todos os dias, na calma do lugar, inúmeras iguanas, e outros tantos teiús circulam pelo terreno, em tranquila busca de cajus, mamões e outras frutas caídas de seus pés. É a parte da produção que lhes cabe, e que deve ser ainda dividida com sabiás, cancões, sebinhos, casacas-de-couro, tico-ticos rei, ararinhas e periquitos e dezenas de outras espécies da avifauna. Já na beira da água, começando a zoada cedo na madrugada, jaçanãs, saracuras, galos d’água, marrecas e paturis também disputam insetos que voam na massa vegetal molhada da borda. É barulhenta a passarinhada.

Pelo chão, por quase toda a área, todos os dias temos a conferir inúmeras pegadas, de capivaras e guaxinins, muitas, de todos os tamanhos, que mostram que o pedaço também é compartilhado com outra turma, cada qual no seu horário. Bichos, digamos, mais gulosos, como a onça parda, a jaguatirica, mais ariscos, fazem suas aparições menos rotineiras, quando encontram com o que encher a barriga. São movimentações de populações naturais que não eram perceptíveis alguns anos atrás e consistentes bio indicadores dos avanços produzidos pelo estabelecimento de objetivos precisos, insistentes.

Há outras frequentadoras mais delicadas, como uma simpática perereca que dorme, todos os dias no mesmo lugar, no fresquinho do cacho de bananas, fora gias, sapos e outros anfíbios que também, sentindo-se seguros e com a organização da cadeia alimentar, vão se arrumando pela Reserva. Fica, todos os dias, clara, claríssima, a importância das UCs, e em particular das RPPNs, como um dos alicerces para a conservação de sistemas essenciais para a reversão do desastre climático.

No seu canto de costume, enquanto as bananas não forem colhidas, a perereca está em paz e cochila até a hora da caça. Foto: Carlos E. Ribeiro Jr. | Canoa de Tolda

Com as pragas de gatos domésticos rondando, algumas vezes é necessário uma operação de salvamento. O filhote de mico caído, já, já, volta para o cangote de sua mãe. Foto: Carlos E. Ribeiro Jr. | Canoa de Tolda

É evidente que a divulgação de nossa declaração de procedimentos tem um aspecto simbólico, talvez ingênuo, já que obviamente os resultados obtidos nesta pequena UC são proporcionalmente bem pequenos se consideramos a detonação que se alastra pela região, pelo país. Porém, não há um só segundo a perder: são séculos de usos e ocupações gananciosas, predatórias, de rapinagem do patrimônio natural do território da bacia, do país, que nos trazem ao difícil presente onde permanece e se sofistica o modelo suicida de vida que a sociedade insiste em manter.

Mesmo com os danos causados ao nosso patrimônio natural comprovados pela ciência – constatados por qualquer pessoa com bom senso e [ainda] capacidade de percepção do mundo real – esta é a opção tomada pela grande maioria das pessoas.

O que tentamos realizar aqui no cotidiano da Reserva Mato da Onça, é uma questão básica, simplória, de sobreviver [não vemos como opção sucumbir] ao colapso. Escolhemos sobreviver sabendo que não há atalhos para um possível sucesso. Há estrada, de chão ou de água, muita estrada, muita, pela frente.

Conheça a declaração de Emergência Climática da Reserva Mato da Onça

O autor

Carlos Eduardo Ribeiro Junior – Desde 1997 no Baixo São Francisco, é um dos fundadores da Sociedade Canoa de Tolda, além de ser um dos co-gestores RPPN Mato da Onça.

◊ Imagem em destaque e no texto – No ponto culminante da Reserva Mato da Onça, mais um dia finda. Foto: Carlos E. Ribeiro Jr. | Canoa de Tolda

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