CANGAÇO

O NORDESTE DO BRASIL VISTO PELO RESTANTE DO PAÍS NOS TEMPOS DO CANGAÇO

Falar de cangaço, explicar este acontecido social nos sertões dos anos 20 e 30 do século 20 não é coisa fácil. Ainda que se tentando ter a mais fria objetividade, para nós, aqui da região, não é difícil ter o forte envolvimento passional que todas estas histórias, lutas, andadas e corridas, sangue, traições, coragem e ousadia provocam.

Dentre a hoje considerável bibliografia sobre o cangaço, cangaceiros e a vida no sertão, um dos trabalhos de Élise Grunspan Jasmin, seu livro Lampião – Senhor do Sertão, do qual transcrevemos abaixo a apresentação, pela própria autora. Mas, antes, vale a pena conhecermos mais um pouco sobre como esta região era vista pelas demais partes do país, sobretudo pelas regiões do sul.

Em 1941, o recente IGBE consagra a divisão regional do Brasil. Fonte | IBGE

Segundo o professor Durval Muniz de Albuquerque, da UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte (em artigo na revista Nossa História, no. 17 (mar 2005), pág. 34)

” O nordeste e a figura do nordestino emergem entre o final do século XIX e o início do século XX, a partir das lutas regionais entre as várias parcelas que compõem as elites brasileiras, notadamente a elite açucareira, do Norte, e a cafeeira, do Sul. Os discursos regionalistas se acentuam à medida que o espaço nacional se unifica e centraliza. As elites do Norte, vinculadas a atividades econômicas em declínio, como a produção de açúcar e algodão, vinham perdendo importância política, no âmbito nacional, e começam a se queixar da forma como são tratadas pelo Estado. Este lhes negaria apoio financeiro, não lhes ajudaria na substituição da mão-de-obra escrava e submeteria suas atividades a uma pesada carga tributária, praticando uma política econômica favorável ao café e desfavorável a seus produtos.

Essas elites, que se proclamam injustiçadas, vítimas do Estado e da ganância dos estados do sul, passam a se articular. No parlamento, fundam o chamado Bloco do Norte. No âmbito local, usam a imprensa e outros meios á sua disposição para pregar a necessidade da união dos estados do Norte em torno de alguns temas básicos, como a crise da lavoura e a falta de braços, a seca e as ameaças á ordem pública vindas das populações rurais. A seca e a falta de atitude por parte do Estado seriam responsáveis pelo banditismo e as manifestações messiânicas, como o cangaço, Canudos (1896-1897) e a vitória dos jagunços ligados ao Padre Cícero em Juazeiro (1914).

Quando, em 1919, ao criar a Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), o presidente Epitácio Pessoa (1919-1922), paraibano e único representante do Norte a chegar ao cargo máximo da nação na Primeira República, definiu a sua área de atuação como sendo o Nordeste – ou seja, os estados situados a leste do Norte. O novo termo começou então a ser usado para demarcar a diferença entre esta área e o restante da região.”  (como no mapa que reproduzimos acima)

LAMPIÃO APRESENTADO POR ÉLISE GRUSPAN JASMIN

” Deixemos a Oleron Barreto, habitante do sertão nordestino, a honra de apresentar Lampião, o célebre bandido cuja vida é tratada neste livro:

De tantos máos indivíduos a que temos conhecido, qual delles pode merecer de nós a pecha de bandido? Unisonamente, em côro, todos dirão: Lampião. Sim, eu também o digo: esse bipede, creatura inferior ao tigre e a panthera, porque estes lhe dão uma egregia licção quanto ao sentimento familiar, é sem duvida alguma a vergonha e a humiliação de nossa própria igual individualidade. Lampião, não há negar, detentor de um coração que se vulcanisa n’um vesuvio de crimes, é verdade um raro bandido. Ele gera e se nutre do crime.

Esse homem que pela manhã fita o sol pelo orifício do cano longo de seu fuzil matador, que a noite banha a folha fria de seu punhal nos raios merencórios do luar, que mira farto de goso e sem remorso algum, ao corpo inanimado de sua presa, que conta sob gargalhas de seu bando as linhas douradas, numero de victimas, incrustadas na coronha de seu fuzil, que faz hygiene do mechanismo de sua arma com água de colônia e aromatisa as balas ponteagudas com perfume semelhante aos preferidos pelas filhas de Jericó, esse Lampião que semeia a dor e a viuvez, a orphandade e o algoz das donzelas, a violação dos lares e o exterior de corações paternos, é na realidade um bandido cuja compleição psychologica analysada por apropriados scientista daria ao mundo um laudo singular pelo valor de uma rara entidade peormente conhecida, por superior aos de mais tarados typos delinqüentes.

Todas as suas forças psychicas são controladas para manter o afan do ódio contra todo que não oram pela sua plataforma. Elle professa a religião da crueldade e tanto rejubila-se com a sua horda sanguinária sobre os destroços da vida de um moço gentil, como canta com igual enthusiasmo a canção dos finados, por sobre a fronte gelada de um ancião, victimado por sua sanha.[1]”

Xilogravura de Amaro Francisco. Acervo | Fundação Joaquim Nabuco

Pondo-se de lado certos a priori carregados de ideologia lombrosiana, percebe-se aí um discurso marcado pelo páthose por uma emoção muito forte. Assim era concebida a imagem de lampião pela maioria de seus contemporâneos, que viam nele mais do que um simples bandido que assolava uma região árida e miserável do Nordeste brasileiro: um perturbador extremo, herói de uma grande tragédia da qual foi ator, autor e diretor e que perdura mesmo depois de sua morte. Uma personagem tão excepcional como Virgulino-Lampião só pode ser compreendida em relação com o lugar de sua origem, de sua vida e de sua epopeia – o sertão.

Essa região tão particular do Nordeste brasileiro tem características geográficas, socioeconômicas, históricas e políticas próprias que não são estranhas à gênese de fenômenos como o cangaço. O sertão é, ao mesmo tempo, um espaço geográfico, um território percebido como impenetrável e também um lugar imaginário que se construiu no decorrer dos séculos em função dos olhares que sobre ele se lançaram. É um território cujas limitações geográficas se modificaram com o correr do tempo, como se essa região se construísse e se elaborasse sem cessar.

Sertão quer dizer grande deserto (“desertão”) no sentido próprio e no sentido figurado, mas também terras interiores. O termo sertão é tão pouco preciso que alguns dicionários o definem como “terra longínqua”. Durante muito tempo seus limites territoriais foram pouco claros; o sertão se definia primeiro como uma zona “interior”, e depois passou a ser visto negativamente como duplo invertido da região litorânea do Nordeste: zona árida, pouco povoada, assolada pela miséria e pela seca, exposta à violência, ao banditismo, à injustiça, ao fanatismo religioso – um outro mundo, com outros códigos, sem meios de comunicações, isolado da civilização. Por sua vez, certos autores dirão que nesse território fechado está preservado um mundo desaparecido, que nele sobrevivem costumes e uma linguagem que remontam ao século XVI.

Nas representações o sertão tem, portanto, uma dupla identidade: região atrasada, de cultura arcaica, e ao mesmo tempo memória viva, “quadro arqueológico da sociedade brasileira”, na expressão de Luis da Costa Pinto[2]. Essa região estende-se por oito Estados do Nordeste brasileiro: Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia, e cobre uma superfície de 1 milhão de quilômetros quadrados, perfazendo um oitavo do território brasileiro. Quando se está no Nordeste do Brasil, o sertão principia ao se avançar para oeste, para o interior das terras e quando se chega às vastas regiões castigadas pela seca, onde cresce uma vegetação quase sempre cinzenta ou prateada.

Distinguem-se três tipos de vegetação: a caatinga, os cerrados e os cerrados fechados. Ali onde as chuvas são escassas, estamos na caatinga ou catinga, região árida, recoberta de arbustos e de árvores que não ultrapassam os seis ou sete metros de altura, de cactos e outras plantas espinhosas. A vegetação é insuficiente para os rebanhos. Na linguagem popular, o termo geral caatinga, de origem indígena, significava apenas que o terreno estava aberto por causa da falta de água e dos arbustos espaçados.

Lampião e seus homens viviam principalmente nos cerrados, zonas de solo argiloso que conservam melhor a umidade, onde entre as árvores mais ou menos nodosas, crescem gramíneas que constituem excelentes pastagens para o gado, que pasta até os galhos dos arbustos. Os cerrados fechados, isto é, terras onde a vegetação e as árvores são mais densas, serviam de esconderijo para os bandidos. Eles se escondiam com maior dificuldade nos cerrados ralos, onde os arbustos, distantes uns dos outros, ofereciam maior visibilidade e facilitavam a circulação.

Área de atividade de cangaceiros. Cartografia Canoa de Tolda

Foi essa região que Lampião e sua horda de bandidos devastaram, pilharam, percorreram e dominaram durante perto de vinte anos, até serem exterminados pelas forças da Ordem, no dia 28 de julho de 1938. Seus cadáveres, decapitados, foram transportados de cidade em cidade até chegarem ao Instituto Nina Rodrigues de Salvador, onde foram expostos e submetidos a estudos frenológicos.

Com freqüência o sertão foi qualificado como “quadrilátero da fome” ou ”polígono da seca”, território hostil que contrasta fortemente com a paisagem luxuriante e acolhedora do litoral nordestino. É um território freqüentemente devastado por períodos de seca que podem estender-se por vários anos às vezes seguidos de chuvas torrenciais tão devastadoras quanto as secas. Nessas condições, o trabalho da terra e a criação de animais – principais atividades econômicas da região – impõem uma capacidade de improvisação diante de um cotidiano instável e num meio ambiente  permanentemente agressivo, que tornam necessários os agrupamentos e as relações de dependência entre indivíduos, razão pela qual a família, no sentido estrito e no sentido amplo, desempenha aí um papel essencial.

A organização política e social do sertão articula-se em torno do fazendeiro, que é dono de sua terra. Ao redor do núcleo central constituído pela família de um fazendeiro gravitam outras células familiares, ligadas a ele por laços de subordinação, de serviços e de compromissos mútuos.  De fato, instaura-se uma hierarquia entre o fazendeiro, que possui a terra e o gado e que não raro detém o poder político, o vaqueiro, responsável pelo gado e que possui ele mesmo algumas reses, e o morador, ligado ao fazendeiro por um contrato verbal, que cultiva uma terra cedida por ele mediante certos compromissos ou serviços e que, de certo modo, é propriedade dele.

Entre esses diferentes grupos existem muitas vezes laços de parentesco simbólicos baseados no sistema do compadrio. Eles atenuam as clivagens sociais, humanizando-as, conferindo-lhes uma “coloração afetiva”, nas palavras de Jean Orecchioni[3], perpetuando essas clivagens e preservando  nelas  as relações de autoridade.

Durante a monarquia o povo do sertão era ajustado, isto é, submetido a um chefe político regional que era proprietário das terras e detinha todos os poderes. Em troca de seu trabalho, o sertanejo recebia uma proteção de tipo patriarcal. Os proprietários de terras tinham direitos sobre o indivíduo, mas também deveres, como o de alimentá-lo durante a seca ou protegê-lo quando irrompiam brigas entre famílias. Essa situação pouco mudou com o passar do tempo.

Não se deve nunca subestimar os laços de solidariedade que unem os membros de um mesmo grupo de parentesco. Mesmo quando este se dispersa e aparentemente se divide pelo sertão afora, eles permanecem fortes e se impõem no momento das secas ou por ocasião das lutas entre famílias que se tornaram inimigas. O poder de um indivíduo na sociedade se mede pelo número de homens que dependem dele. É por isso que as relações sociais se inscrevem em um esforço contínuo para manter relações de dominação, de dependência e de trocas mútuas.

Família Ferreira | Juazeiro do Norte | Lauro C. de Oliveira | 1926 | Acervo Federico P. de Mello

Jean Orecchioni nos diz que as hierarquias no interior de cada grupo, cuja célula de base é a família no sentido amplo do termo, se baseiam no “poder efetivo”, isto é, no

[…] peso que representa um indivíduo na sociedade, no crédito moral do qual usufrui, na extensão da autoridade da qual dispõe, na eficácia dos meios que pode empregar para impor sua vontade, fazer respeitar sua pessoa e seus bens, assegurar a proteção de todos aqueles que gravitam ao seu redor, pelos quais ele é responsável.Tais são as principais noções que o conceito de prestígio comporta – aquele famoso prestígio que parece ser o valor por excelência em função do qual se organiza toda essa sociedade. A perda do prestígio é a desmoralização, verdadeira palavra-chave que perpassa todos os fatos pelos quais se manifesta o enfraquecimento da posição de um indivíduo: ser preso em razão de um delito, por exemplo, é uma desmoralização, uma falta de consideração, o sinal de que a pessoa não vale nada; ser recrutado pelo exército, durante o império, também era uma desmoralização; ter um favor recusado, em vários casos, é outra. E isso não vale para o preso ou para os que são recrutados ou despedidos (se o fato vem a ser conhecido), mas também para aquele a quem ele está ligado, de quem é “cliente” no sentido romano – e que ele chama, com efeito, seu “patrão”. Este vai, aliás, interceder a favor de seu protegido, deixando bem claro que lhe fizeram uma afronta pessoal e que deve ser reparada o mais rápido possível. E é pelo sucesso de uma intervenção que se medirão o seu prestígio, o crédito que lhe é concedido “em cima” e aquele, portanto, que lhe pode ser concedido “embaixo”[4].

O controle político de uma região se consegue não raro pela violência e caracteriza-se pelas lutas mortais entre facções rivais. A violência é constitutiva dos laços políticos, e só através dela é que se estabelece a dominação de um território. Ser destituído do poder em um município significa não somente perder o “prestígio”, mas também ser afastado da comunidade pelos que detêm o poder judiciário e policial. As formas de violência no sertão são inseparáveis do modo de vida de seus habitantes tanto no exterior como no interior de um grupo.

Irmãos Virgolino e Antonio Ferreira | Lauro C. de Oliveira | 1926 | Acervo Federico P. de Mello

A violência pode manifestar-se sob a forma e conflitos entre vizinhos, de lutas sangrentas entre famílias rivais ou de conflitos políticos entre potentados locais, os coronéis, para a dominação de uma região. A marca da violência está presente deste a colonização portuguesa, quando o domínio do sertão passava pela luta contra os índios pela apropriação de um território. A violência foi rapidamente legitimada em uma sociedade nascente para se tornar o único recurso moralmente tolerado. Uma das hipóteses da legitimação da violência seria a ausência de representação do poder do Estado no sertão e a predominância do poder privado ligado à posse da terra.

No período que nos interessa, essa delegação existe, mas os representantes do poder (justiça, principalmente polícia) ou estão submetidos aos potentados locais – os coronéis -, ou são obrigados a se retirarem, impotentes para exercer suas funções. Desde a colonização do Brasil no século XVI o sertão foi palco de lutas entre famílias inimigas sequiosas por enriquecer seu patrimônio e estender sua dominação política a determinada região.

Sob o Império, e muito mais a partir da segunda metade do século XIX, os conflitos entre famílias visavam principalmente ao controle político das câmaras municipais; dessa forma os potentados locais eram capazes de ocupar funções no governo de cada província. Essas lutas pelo poder dividiam a comunidade local em facções políticas rivais, que envolviam para cada uma delas não só um chefe de clã, mas também todos os sertanejos sob sua dependência. No Império, o governo central não tinha uma política definida com relação a essas lutas de clãs. Às vezes arbitrava conflitos ou tentava uma reconciliação entre dois campos adversos propondo um tratado de paz, mas essas iniciativas eram muito raras.

Nas palavras de Amaury de Souza:

Ao adotar uma estratégia altamente flexível para com estas lutas, o governo central e os seus representantes, os presidentes das províncias, habilitavam-se a endossar a doutrina do fato consumado, aceitando qualquer vencedor como o legitimo representante da comunidade. Ao assim fazer, confinava a violência aos níveis mais baixos do sistema, reduzindo as lutas pelo poder político a um problema exclusivamente local, cuja solução deveria ser encontrada pelos clãs. A autoridade dos chefes locais era a contraparte da estratégia governamental[5].

A sociedade do sertão organizava-se em torno da noção de poder privado, do exercício privado de uma certa forma de justiça na qual o respeito da lei consuetudinária prevalecia sobre a lei instituída. No seio da comunidade do sertão, a ação governamental limitava-se ao recebimento dos impostos e nunca interferia nas decisões dos clãs; não existia nenhum código, nenhuma lei escrita. Era o chefe político que encarnava a lei. Em um município as forças de polícia estavam diretamente sob as ordens do juiz de paz, que por sua vez era eleito localmente, escolhido entre os notáveis. Essa situação reforçada de maneira evidente o poder dos potentados locais – os coronéis – em detrimento do poder da administração central.

No sertão os cargos de coronel eram reservados aos chefes políticos do município. Desde fins do século XIX, o termo coronel designava um proprietário de terras que, dominando politicamente um município, exercia um poder de tipo patriarcal sobre parte da população. Seu poder era determinado pelo número de pessoas que trabalhavam para ele aos quais assegurava a proteção em troca de votos, mas também pela quantidade de homens armados de que dispunha para garantir o seu poder.

Volante de Teófanes Ferraz Torres | a.d. | Vila de Nazaré, PE | 1924 | Acervo Federico P. de Mello

Em 1900, nove anos após  promulgação da Constituição de 1891, que lançou as bases da República e reforçou a autonomia política e administrativa dos Estados federados do Brasil, assistimos , sob a presidência de Prudente de Morais, ao estabelecimento de acordos entre os chefes locais e os dirigentes dos governos de diferentes Estados da Federação; os potentados locais, ou coronéis, em virtude do poder que exerciam sobre a população local, garantiam certa quantidade de votos em favor do candidato ao cargo de governador: é o chamado “voto de cabresto”; os governos, em troca,lhes deixavam certa liberdade de ação na região e lhes permitiam o controle do aparelho governamental em nível local. Essa política foi chamada de “política dos governadores”.

A Revolução de 1930 pôs fim à República Velha e o sistema oligárquico sobre o qual ela repousava. Quando tomou o poder, no dia 3 de novembro de 1930, Getúlio Vargas lançou as bases de um Estado centralizado; sem realizar eleições, entre 1930 e 1932 nomeou quase todos os governadores federais, chamados a partir de então de interventores; quase todos eram militares ligados à Aliança Liberal, o partido de Vargas. Para o Nordeste os interventores não podiam ser do Estado que iriam dirigir, isto é, não deviam ter laços políticos com as oligarquias locais.

No sertão, uma das primeiras decisões dos interventores consistiu em desarmar os chefes políticos locais, prender alguns deles e despojá-lo de seus poderes discricionários. As intenções do governo eram claras: tratava-se de concentrar o aparelho administrativo e policial nas mãos do Estado. O governo revolucionário substituiu os prefeitos hostis, reforçou o controle do financiamento dos municípios e centralizou a justiça. O Estado Novo, ditadura imposta por Getúlio Vargas em 1937, completou uma primeira etapa de centralização do Estado e pôs o poder judiciário sob o controle do poder central. Entretanto, o esforço permanente do poder central para controlar e dominar o sertão revelava-se muitas vezes ilusório, pois sua margem de manobra era limitada: os potentados locais continuavam a dominar a vida política, pois o aparelho judiciário e policial e a população do sertão permaneciam, em grande parte, sob sua dependência.

Essa população já se rebelara algumas vezes no passado; as revoltas camponesas nunca eram dirigidas contra os coronéis, e sim contra um poder central anônimo e distante. Citemos, por exemplo, a insurreição que eclodiu em 1852 na região de Pau d’ Alho, conhecida em Pernambuco pelo nome de “Revolta dos Marimbondos”, e, no Estado da Paraíba, sob o nome de “Ronco da Abelha”, levante popular suscitado pela instituição de um registro obrigatório dos nascimentos e dos óbitos em cada paróquia. Citemos ainda a revolta dos “Quebra-Quilos” após a instituição do sistema métrico adotado no Brasil em 1862 e tornado obrigatório em 1873. Camponeses e pequenos comerciantes do sertão e do interior do Nordeste (Rio Grande do Norte, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Alagoas) organizaram-se em grupos e enfrentaram a polícia local. Invadiram os mercados, destruíram os instrumentos de medida “do governo” e depois atacaram os arquivos municipais, os arquivos dos notários e as repartições de arrecadação fiscal, incitando a população a se recusar a pagar os impostos. A resposta foi terrível. Mais de mil soldados enviados ao Estado da Paraíba cometeram todo tipo de violência e prenderam todos os homens em idade de trabalhar, o que resultou em desastrosas perdas para a economia.

Tenente João Bezerra (esq.) | 28 de julho de 1938 | a.d.

Esses movimentos expressam a recusa da população sertaneja a aceitar as reformas ou um sistema de valores impostos do exterior por um governo distante e para eles quase abstrato. Ainda que o sistema segundo o qual funcionava a sociedade do sertão possa parecer profundamente injusto, não deixando nenhuma margem de manobra, nenhuma liberdade ao indivíduo isolado, essa ordem tinha um sentido para qualquer sertanejo. A revolta individual de um sertanejo atingido em sua honra ou privado injustamente dos seus bens, que luta para restabelecer seus direitos diante de um inimigo que ele conhece bem, que tem os mesmo códigos que ele, não tem nada de semelhante com a revolta coletiva dirigida contra as medidas que vêm de certa forma “do outro lado do mundo” ou “do outro lado da fronteira”. Se nos colocamos de um lado ou de outro dessa fronteira, não podemos nos esquivar à clivagem entre o “aqui” e o “lá”, a qual não cessa de se construir desde que essa terra longínqua ou estrangeira se chame sertão.

Mas foi incontestavelmente quando irromperam movimentos que se pôde qualificar de messiânicos que o poder central se chocou com uma organização totalmente autônoma, ao mesmo tempo distante do jogo político e da economia local e fora do seu controle. Foram movimentos populares não-violentos. ”Aqui, muito mais que sublevação, trata-se de secessão”, diz  Jean Orecchioni, e é certamente por causa dessa característica de secessão que a repressão foi tão violenta, tão radical. Esses movimentos caracterizam-se pela emergência de um ou diversos profetas, espécies de messias que anunciam o fim dos sofrimentos para um povo arruinado pela miséria. Em torno de chefes carismáticos reúnem-se fiéis que formam comunidades que vivem em autarcia, isoladas da comunidade do sertão. Jean Orecchioni enumera no Brasil dezoito movimentos desse tipo desde 1817, a maioria dos quais se desenvolveu no sertão do Nordeste.

Beato da Cruz | Juazeiro do Norte, CE | do livro Beatos e Cangaceiros, de Xavier de Oliveira, 1932

Evoquemos aqui brevemente o movimento de Canudos, com qual se chocou a República recém-instalada, dominada pela figura carismática de Antônio Vicente Mendes Maciel, conhecido como Antônio Conselheiro, Santo Antônio dos Mares, Santo Antônio Aparecido ou Bom Jesus Conselheiro. No dia 13 de junho de 1893, Antônio Conselheiro e seus fiéis instalaram-se em Canudos, em plena caatinga do sertão baiano, nas margens do rio Vaza-Barris. Essa localidade, cercada de colinas, foi rebatizada de Belo Monte. Pouco a pouco a povoação organizou-se, desenvolveu-se economicamente e acolheu milhares de fiéis (fala-se em 25 mil, com um número considerável de ex-escravos). Canudos torno-se a localidade mais importante da Bahia depois da capital, mas também um lugar onde se implantou um sistema de autonomia econômica e de vida comunitária que mantinha, ao mesmo tempo, relações comerciais com as demais comunidades dos arredores. A constituição de uma milícia chamada Guarda Católica mostra como era importante defender e reivindicar essa terra – terra prometida – apropriada pela comunidade.

Em dois anos, os proprietário rurais da região tinham perdido grande parte de sua mão-de-obra, que se instalou em Canudos. Para as elites políticas republicanas, a existência dessa comunidade contrariava os projetos de “modernização” e “unificação nacional” e revelava as diferenças profundas que existiam entre dois mundos e duas culturas estranhos uns aos outros: os do sertão e os do litoral. Para a nascente República, somente a erradicação desse movimento de contestação permitiria instalar a autoridade pública nessa região considerada arcaica por suas elites. O que deveria ser uma luta do Brasil republicano contra uma “seita político-religiosa” converteu-se na luta fratricida mais terrível que o Brasil jamais conhecera.

A Guerra de Canudos começa em novembro de 1896. Foram necessárias quatro expedições militares que reuniram, no final, contingentes de soldados e de oficiais de todos os Estados do Brasil para erradicar esse movimento. Ninguém teria imaginado a força de convicção e o ardor guerreiro dos fiéis de Antônio Conselheiro. Os combates foram terríveis; os soldados que chegaram a esses territórios desconhecidos e hostis – mal equipados, ignorando totalmente um meio que eram incapazes de dominar, falando o tempo todo de sua volta ao “Brasil” quando os combates terminassem – perpetraram atrocidades proporcionais à singularidade do inimigo sertanejo. Era preciso apagar, principalmente, todo traço físico e material dessa comunidade. Ou melhor, voltar a se apropriar dessa terra que, aos olhos da República, tinha sido usurpada. De Canudos não deveriam restar nem cidade, nem locais simbólicos, nem combatentes.

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Imagem do topo – Lampão e seu bando – Foto Benjamim Abrahão, 1936 – Coleção Ruy Souza e Silva, SP – Acervo ABA Film, Fortaleza, CE

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