Projeto Canoa de Tolda

O Projeto Canoa de Tolda

Em 1997, os fundadores da Sociedade Canoa de Tolda, ainda informalmente, deram início às atividades de mobilização e organização de pequenas comunidades no Baixo São Francisco. Inicialmente na região do sertão de Alagoas, no povoado do Mato da Onça, município de Pão de Açúcar. Em seguida, com extensão de ações para comunidades vizinhas na mesma região, nos estados de Sergipe e Alagoas. Neste ano, no mês de dezembro, foi feito o primeiro contato visual com a canoa Luzitânia, da qual só se tinha informações de sua existência através de noticias de pessoas das populações ribeirinhas.

Após a criação jurídica da Sociedade Canoa de Tolda, e do estabelecimento de um programa de ações, foi dada prioridade, pela importância da canoa de tolda Luzitânia (e pelo seu avançado estado de decomposição, ainda que navegando) à aquisição da embarcação e a sua imediata retirada de serviço, colocando-a em seco em local seguro. A compra ocorreu em julho de 1999, após quase 2 anos de negociação com o seu proprietário, no alto sertão sergipano. A partir desta data foi lançado o Projeto Canoa de Tolda, tendo como objetivo completo restauro da embarcação e de sua colocação em ordem de marcha.

A relevância da canoa Luzitânia, como o então último remanescente operacional na época, se deve ao passado recente do Baixo São Francisco, onde esta classe de embarcações cargueiras desempenhou vital papel na vida das populações ribeirinhas.
Com o rio São Francisco regularizado, através da construção das inúmeras barragens/hidrelétricas e seus reservatórios nos últimos 50 anos, a vida no Baixo São Francisco, até então regida pelo regime de cheias, foi inteiramente modificada, com o comprometimento definitivo na qualidade de vida do ribeirinho. As primeiras barragens foram construídas ainda numa época em que a consciência ecológica era muito limitada. As populações ribeirinhas do baixo São Francisco, que antes contavam com certo grau de prosperidade e bem estar, garantidos pela generosidade das cheias periódicas do rio, se defrontam hoje com uma nova realidade para a qual não estavam preparadas.

Com a menor vazão do rio (e a supressão do regime das cheias periódicas), toda economia regional e as inúmeras atividades correlatas, suas tradições, além de laços afetivos, foram gradativamente perdendo sua importância ou mesmo desaparecendo. Da mesma forma, a navegação intensa entre a cidade de Piranhas e a foz do rio foi completamente extinta. O sistema rodoviário aumentou a velocidade no transporte de cargas e passageiros, mais ágil, ainda que menos confortável, afastando ainda mais o homem de seu contato com o rio.

Naturalmente, as embarcações tradicionais, como as canoas de tolda, as chatas, os navios de transporte de passageiros, foram gradativamente perdendo sua função econômica. Os armadores vendiam as embarcações a vela (para transformação em lanchas a motor), as levavam para uma sobrevida de trabalho nos sub-médio e médio São Francisco, ou ainda as destruíam literalmente. Não foram poucos os casos de afundamento desejado.

Entretanto, a memória do tempo em que o regime do rio, a navegação fluvial e a atividade econômica do baixo São Francisco representavam um diferencial em qualidade de vida não foi perdida. É na canoa de tolda que os beiradeiros identificam um dos símbolos deste modo de vida. Por esta razão foi o Projeto Canoa de Tolda a base de todas as outras iniciativas da entidade. O projeto sempre teve como premissa principal a permanência da canoa Luzitânia navegando no Baixo São Francisco. Isto significa despesas gerais de manutenção, gastos com tripulantes, e custos outros diversos. Por isto a integração de projetos apoiados na mobilidade itinerante da embarcação.

O exemplar trabalho de restauro executado na canoa Luzitânia, podemos dizer, muito provavelmente jamais será repetido em qualquer outra embarcação semelhante. O tempo passa e já não poderemos contar com os derradeiros Mestres Artífices do Baixo São Francisco, suas memórias e vigores.

No caso da Luzitânia foi possível contar com a preciosa dedicação de artesãos como Mestre Nivaldo, que, num esforço físico considerável – quando começamos a falar sobre o projeto, deixamos claro que toda a obra seguiria rigorosamente as técnicas tradicionais, restringindo-se ao mínimo o uso de ferramental elétrico – desde o início de 2002, também abraçou conosco o sonho de refazer a canoa. Tivemos, ainda, o engajamento de lavradores de madeira, como S. Agripino, da Ilha do Ferro, S. Tonho de Frito, do Bonsucesso, e Mestre Avelardo, no Mato da Onça.

Ainda da parte de Mestre Nivaldo, houve o belo compartilhamento da sua ciência sobre os inúmeros, sutis, simples, funcionais e muitas vezes surpreendentes, detalhes de como se fazer uma boa canoa. Como em todos os bons exemplos de embarcações tradicionais, também aqui nada é feito sem uma precisa função, fruto de experiência de anos de erros, acertos e a busca da canoa mais rápida, bem cargueira, ¨…para subir  da praia ao sertão, ligeiro…¨ ou descer, ¨…dando menos bordo que as outras…¨. Mestre Nivaldo, foi um dos derradeiros guardiões da arte de se fazer, como antigamente, boas e belas grandes canoas, posto  que mesmo seus filhos, carpinteiros e escultores em madeira na tradicional Ilha do Ferro, da Pão de Açúcar, no sertão de Alagoas, preferiram seguir outro caminho.
Outro fator de dificuldade, é que já não temos mais as madeiras tradicionais da região adequadas e necessárias para uma construção tradicional padrão.

Qualquer tentativa futura, fatalmente deverá empregar técnicas alternativas, não tão fiéis, para se fazer uma canoa de tolda semelhante, ou mesmo outra embarcação tradicional (uma chata, uma lancha).

Ao longo destes anos, a comunidade ribeirinha do Baixo São Francisco, acompanhou as agruras do Projeto Canoa de Tolda. O fato de existir ¨ … uma tolda sendo feita no sertão, lá no Mato da Onça… ¨, ou ¨ …a Luzitânia vai voltar a andar na margem… ¨ provocou uma grande expectativa, confirmada pelas inúmeras manifestações de interesse, apoio, depoimentos emocionados e emocionantes, por parte de antigos canoeiros, armadores, pilotos, comerciantes, mulheres, homens e ainda jovens parentes de gente ligada aos barcos. Todos com vínculos tanto profundos como à flor da pele, com as viagens em canoa, as esperas no porto, a admiração das canoas seguindo seus rumos, descendo ou subindo o rio, detalhes ou qualidades distintos desta ou daquela outra canoa, seus nomes, cor dos panos, nomes de pilotos, seja gente do sertão, seja gente da praia.

Entre 2003 e 2005, o estaleiro que a Sociedade Canoa de Tolda mantinha no Povoado Mato da Onça (Pão de Açúcar, AL) foi destruído três vezes pela subida do nível do São Francisco, quando da abertura das comportas da UHE de Xingó. Foram enormes prejuízos e atrasos no projeto.

Após o alagamento de fevereiro de 2005, e com o risco de perda total da canoa Luzitânia, a Sociedade Canoa de Tolda entendeu que a única solução seria a mudança do local de trabalho para Brejo Grande, Sergipe (na região da foz), por oferecer menos risco de situação semelhante. Ao menos por um período decisivo para a arrancada final. Em março fizemos o resgate da embarcação, rebocando-a submersa até Brejo Grande, e em seguida colocando o casco encharcado em terra.

Só assim, enquanto se buscavam os recursos para a obra, poderíamos ter a garantia da preservação de todos os componentes estruturais (e diversos elementos como cavername, tabuados, ferragens, mastreação, etc.) para que o restauro fosse perfeitamente fiel, sem qualquer perda de características originais.

Com a descida da Luzitânia para a praia no início de 2005, em manobra decisiva e definitiva para o seu salvamento, tivemos a visão das pessoas descendo para a beira do rio, em ambas as margens, vendo a canoa submersa, sendo rebocada de rio abaixo. E, a cada parada, o ajuntamento em torno da Luzitânia, cheia de lama, apenas os arcos de tolda fora da água, mas ainda uma sobrevivente, e o questionamento de ¨ quando a canoa vai voltar para a margem ?…ela volta aqui para o sertão ?…a gente vai ver essa canoa embelezando o rio novamente ?… ¨.

O novo estaleiro foi reativado em meados de 2005, no porto da marinha, em Brejo Grande. No inicio de 2006, já no final da obra, litígios com a prefeitura local provocaram questões com a justiça, que deu ganho de causa à Sociedade Canoa de Tolda

É importante notar que com o restauro da Luzitânia foram desenvolvidas técnicas especiais (com a muitas vezes difícil associação de processos construtivos navais tradicionais e outros atuais de tecnologia recente) que conferem à embarcação longevidade (pela sua total impregnação e colagem com adesivo/impregnante epóxi), sem qualquer interferência em seu aspecto : por exemplo, é impossível distinguir a simulação da retração de calafetos, enchimentos em cabeças de parafusos, fendas  de uma colagem tradicional. Estes processos poderão ser aplicados em outras embarcações, contribuindo para a preservação de nosso patrimônio histórico naval.

A volta da canoa de tolda Luzitânia, em perfeito estado, à navegação no Baixo São Francisco, sem dúvida, trata-se não só da recuperação de um dos mais importantes símbolos do nosso patrimônio afetivo, imaterial, mas também da perenização de um elemento histórico-cultural executada de maneira sem precedentes. Sem esta iniciativa, a singradura destas embarcações/ícone se resumiriam aos poucos documentos fotográficos existentes e lembranças da memória dos mais velhos. Indo mais longe, um dos caminhos encontrados para a extensão da iniciativa em questão foi o seu desdobramento/suporte para outras ações (ex. Cine Beira Rio e Rota das Canoas) que contarão com o poder de aglutinação e de fascinação exercido pela canoa Luzitânia.

Em 2007, tentou-se, com a participação do Projeto Canoa de Tolda no Prêmio Cultura Viva além do reconhecimento da iniciativa, a obtenção de um dos prêmios, o que infelizmente não ocorreu. Entretanto, com a iniciativa classificada como semifinalista do Prêmio Cultura Viva, foi obtido o selo Cultura Viva.
Conhecendo, agora, um pouco mais da história desta canoa, acompanhe, abaixo, as imagens que documentam parte deste causo que lhes contamos. A história da canoa Luzitânia, de como escapou de ser queimada, para vir a se tornar uma referência, aqui no Baixo ou, como gostava de dizer o Zé Pezão (que falta o homem faz) “fica para a história do Brasil…” Será?

A manutenção da Luzitânia é hoje garantida pelo Projeto Luzitânia. Conheça mais sobre esta iniciativa aqui.

Veja aqui:
Nas Carreiras com a Luzitânia
Primeira Viagem ao Sertão – 2007
Viagem de Avaliação – 2008
O Tombamento da Luzitânia

Conheça mais sobre a canoa Luzitânia

O projeto Canoa de Tolda

Imagem do topo – Reserva Mato da Onça – Acervo Canoa de Tolda

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