REDAÇÃO | quinta-feira – 23 de abril de 2020
PATRIMÔNO NAVAL | CANOA LUZITÂNIA
A conservação da canoa Luzitânia, pelo vínculo natural com o Velho Chico, seu ambiente de criação e movimentação, está diretamente ligada ao patrimônio natural, sendo a embarcação um dos referenciais na difícil proteção da memória dos lugares ao longo das margens do Baixo São Francisco
Desde o início do ano, após o encalhe da embarcação ao final de 2019 (ver notícia encalhe), a canoa Luzitânia está em processo de manutenção – em terra, na Reserva Mato da Onça – atividade que, como todas na Reserva em campo ao longo do Baixo, teve impacto, não só pela evaporação de editais públicos destinados à cultura (desde 2015 ao menos) e apoiadores, mas também pela recente crise sanitária da Covid-19.
Em meio às dificuldades provocadas pela ausência de recursos financeiros e humanos, os trabalhos – reparos, revisões e ajustes – na canoa Luzitânia prosseguem, com a equipe de base reduzida a duas pessoas divididas apertadamente entre as atividades na tradicional embarcação e as demais, igualmente imprescindíveis: na Reserva Mato da Onça, em campo e internas.
Com a chamada situação de normalidade do reservatório de Sobradinho anunciada pela ANA – Agência Nacional de Águas que proporcionou um pequeno aumento da vazão a jusante de Xingó para (gloriosamente alardeados) ínfimos 1.100 m³/s e em seguida 1.300 m³/s (estes últimos o valor mínimo estabelecido pelo Plano de Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco), os trabalhos permanecem tendo como prioridade a revisão e reparos de pontos comprometidos no casco abaixo da linha d’água (linha de flutuação da embarcação) de modo a manter a flutuabilidade. Caso haja alguma operação com aumento da vazão da ordem/acima de 1.700 m³/s a Luzitânia volta a flutuar sem problemas.
Os inúmeros pontos identificados como necessitados de reparo e/ou substituição de material, na maioria dos casos, ainda são consequência das inundações no estaleiro inicial do restauro da Luzitânia, no Mato da Onça, em 2003, 2004 e 2005. Em três momentos, com operações de barramentos que aumentaram de forma significativa as vazões, sem o devido preparo de populações a jusante, a canoa se viu naufragada por vários dias. A situação provocou inúmeras infiltrações de lama em pontos inacessíveis para uma boa remoção do material posteriormente. Tais locais ficaram com a impregnação com epóxi comprometida e vieram dar problemas, como agora. De modo geral, a condição física da Luzitânia é muito boa, confirmando a qualidade de seu restauro e dos procedimentos de conservação.
É importante notar que uma operação mais profunda, como a que temos em curso, reflete a dificuldade extrema de se manter uma embarcação muito particular, que exige atenção quase que diária, ao longo do ano. Algo que, além da expertise, pois temos em mão um objeto que além de seu histórico de uso, também é museológico, exige recursos. Recursos que, infelizmente, não foram possíveis de captação e aplicação na Luzitânia desde 2010 como apresentado acima.
Hoje, sem editais e sem patrocinadores – que viabilizaram o Projeto Luzitânia, entre 2008 e 2010, pela Lei Rouanet – os trabalhos estão sendo realizados com limitada verba própria, da entidade, para despesas de mão de obra e itens como logística (combustível para deslocamento, por exemplo) e estrutura de funcionamento (energia elétrica, equipamentos, maquinário). Os materiais para a obra foram disponibilizados, através de cooperação, pelo IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, via DEPAM – Departamento de Patrimônio Material e da Superintendência do órgão em Sergipe.
Finalmente, na lógica da essencialidade da preservação de tão rara embarcação, não há qualquer alternativa: a Luzitânia deve, sim, ser objeto de todo o esforço possível para ser mantida em perfeito estado. Ou será seu fim, assim como o de sua carga memorial, histórica e afetiva.
COM TANTA COISA A SER FAZER, PERDER TEMPO COM UMA CANOA VELHA?
Bela velha canoa. Foto: Carlos E. Ribeiro | Canoa de Tolda/InfoSãoFrancisco
Em tempos de nebulosidade quanto ao futuro, com a crise sanitária global da Covid-19 produzindo sofrimentos e devastação, seria lógica, justa, a preocupação com uma tradicional e simples embarcação cargueira velha, criada por gente igualmente simples, mas genial, que por um acaso não tomou o rumo do completo desaparecimento como as demais dezenas e dezenas de outras em todo o Baixo São Francisco?
Dos anos do cangaço, com o capitão Virgulino Ferreira a bordo, ao presente, pelas carreiras do rio de baixo, do sertão até a pancada do mar, a Luzitânia teve seu casco correndo tanto pelas águas então livres do Velho Chico – barrentas das cheias, ou mais límpidas, das estiagens – como pelo que sobrou do rio barrado, fraco, sujo, fiapo líquido que a pulso chega ao mar.
Em sua secular existência a canoa Luzitânia (embarcação das mais antigas da bacia do São Francisco e modelo padrão da tradicional canoa de tolda) foi o objeto que transportou, além de cargas inúmeras, talvez centenas e centenas de testemunhas da evolução da equivocada e nada gentil utilização do rio e seu território abaixo das cachoeiras. Velha de século, a Luzitânia é hoje a fiel depositária de tradições navais de inúmeras partes do mundo (ver Patrimônio Naval) que vieram aqui bater com os europeus e na miscigenação com as tradições nativas, deu no que deu: magnífica embarcação a canoa de tolda.
A grande dificuldade na obtenção de recursos e/ou apoio através de contribuições para a manutenção da embarcação podem ser vistas como o reflexo do valor real de seu significado, como um dos mais interessantes elementos tecnológicos e culturais gestados (com DNA planetário e nativo) e introduzidos na paisagem do Baixo e, nas décadas de 40 e 50 no Médio São Francisco. Manter a canoa aprumada é algo a cada dia mais difícil mas perde-la seria o equivalente à extinção de uma espécie da fauna ou da flora.
Outro ponto interessante: a Luzitânia, embarcação mais antiga a navegar no Baixo São Francisco, anterior aos barramentos, se constitui, sim, de forma natural, em elemento/amálgama de primeira ordem a agregar o direito coletivo difuso a um rio saudável.
Para navegar, há quer ter água, em quantidade e boa, rio profundo. Consequentemente, rio vivo, bom para bichos e gentes, bom de viver.
Haveria dúvidas, ainda, quanto à relevância ou não do tempo voltado para a velha canoa Luzitânia?
◊ O projeto Luzitânia é uma iniciativa permanente da Sociedade Canoa de Tolda
Imagem em destaque – A Luzitânia em terra. Foto: Carlos E. Ribeiro Jr. | Canoa de Tolda/InfoSãoFrancisco
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