Carlos Eduardo Ribeiro Junior / sexta-feira – 17 de janeiro de 2020

Com a partida de Valdemar de Ramiro, da Candelária, um dos derradeiros canoeiros de longo curso vivos, a essencial história do rio de baixo livre, das navegações de barra a barra, perde um grande depositário da memória da vida na margem e fica mais difícil de ser preservada

As conversas nas tardes pareciam não ter fim, ali na varanda dos fundos da casa nos Escuriais. Mestre Valdemar de Ramiro, da canoa Candelária, com seu fino e particular humor, memória detalhista, ia encadeando histórias e histórias dentro de histórias de sua vida no movimento da margem, navegando da praia, das salinas na Parapuca, até Piranhas Velha com suas canoas.

Nomes, de gente, de bem e de bandidos, de canoas, de seus donos, de suas cargas, de seus pilotos, de navios, de programas de rádio, datas, pesos de cargas, enfim, um mundo de precisos detalhes meticulosamente organizados na memória do homem, se espalhavam pelo ar da varanda como projeções vivas.

Muitas vezes a conversa começava com a espera pela chegada de nossa canoa que apontava já pouco acima do Munguengue, na banda de Alagoas.

“Estava aqui esperando vocês e vi quando a canoa apontou ali abaixo do Pedro Chaves, a nuvem chegando pesada com a refrega puxada. Ali vem tempo, e se não dominar a canoa, o traquete enluva no mastro. Apois. E vi a manobra da passagem do pano bem antes da lapada da refrega, que já vinha fazendo a maroada. O pano passou armadinho, a canoa nem pendeu e vinha que vinha empurrando água, ali tem canoeiro e proeiro – ah, mas é proeira, né, a moça aí…no meu tempo só tinha macho…mas é bom mudar…”

Quisera ter tido mais outras tantas oportunidades, ao longo dos anos de conhecimento, para ouvir e aprender um pouco mais. Não deu.

Na tarde de ontem, 16, ficamos sabendo da partida do homem o que trouxe, de imediato, grande saudade. Mas, trouxe também, sobretudo, uma sensação boa, pela honrada oportunidade de uma convivência sem “delongas”, como Seu Valdemar mesmo dizia. A porta sempre aberta.

Buscando nos arquivos os depoimentos do amigo, para tentar escrever algo, as interrupções foram muitas: não houve como não deixar de rir muito, como se ouvindo sua fala agora, com suas impagáveis colocações e observações. Veio, portanto, muito clara, a conclusão de sua longa navegação de que a ele somente cabe, o canoeiro Valdemar de Ramiro, da Candelária, dos Escuriais, as derradeiras palavras sobre um pouco do que presenciou.

A fala é sua, mestre Valdemar de Ramiro, da Candelária, dos Escuriais, nascido Valdemar Martins Oliveira, em 26 de abril de 1924, ali nas Traíras, em Canhoba, mas para sempre Valdemar de Ramiro, da canoa Candelária, canoeiro de barra a barra, viveu bem e sabia disso. Como sabia.

“Andei muito nesse rio, mas o rio tá acabado”

Texto integral de entrevista com Mestre Valdemar de Ramiro (Jornal A Margem – Jan/Fev 2010)

Ali na boca do sertão, nos Escuriais, mora S.Valdemar da Candelária. Com seus 85 anos, é um botija de histórias e memória desse rio. Subindo ou descendo o rio, não se pode deixar de dar o porto e ter uma prosa, ali na área do fundo, a vista para o Bode. É deixar o homem falar e viajar com ele.

“Comecei esse movimento, garotão novo, com uns 12 anos, na canoa de meu pai, a Flor do Dia. Mais tarde, já maior, comprei a minha primeira canoa, uma chata, meio feiosa, assim, mas boa de pano toda.Custou, naquele tempo, 12 contos…carreguei com ela, muito sal, pegava lá na Parapuca, para lá da Parapitinga, hoje Brejo Grande…mas naquele tempo era Parapitinga.”

Entrevista com Valdemar da Candelária – jornal A Margem – Jan/fev 2010

Mais tarde, possuí uma canoa melhor, a Candelária, de 400 sacos…fazia a maré ali na Criminosa, quase na boca do rio, e subia carregado de coco. Era uma canoa boa, feita pelo Mestre Zé Rodrigues, lá de Traipu. Na Parapuca tinha um posto fiscal, numa casinha ali na boca do canal. Para controlar o movimento. Ainda tá ali? Mas, a gente tinha que inventar… quando passava ali no posto,enrolava uma notinha de 10 mil réis e sacudia pro fiscal…a malandragem vem desde o início do mundo…»

«Você teve com Romão lá no Mato da Onça? Era um cabôco bom. Dê um abraço bom nele. Foi meu canoeiro, bom de boca que só… ficava uma lapa de cabôco…o cabra comia mesmo…»

«Pois. De uns trinta anos para trás, vai um dia amanheci na Passagem, carregado de algodão, pra descarregar para a fábrica. Pela noite ainda tinha carga, e os homem para lá e para cá, com os sacos na cabeça…no domingo encostou um dos navio, o Brasiluso, o comandante era o Zé Banha (aquilo gostava de uma troça). Ele tinha um rádio, que era uma grande novidade para nós aqui…E chega o Zé Banha com o rádio, eu perguntando tem gente aí dentro? Como é esse diabo? E o Zé Banha então se chega e diz que lá fora já tem um aparelho que você vê o povo, fala, só falta dar a mão… era a tal da televisão… Mas o primeiro rádio por aqui nos Escuriais, foi de um delegado de nome Jaime. Naquela época só tinha dois partidos, a UDN e o PSB. O tal do Jaime era do PSB e tinha um outro cabra aqui, o Mané da UDN. Quando ia ouvir o rádio do Jaime, e saia alguma coisa da UDN, o Jaime desligava, já quando passava alguma coisa do PSB, botava nas alturas. E o Mané se enfezou e disse para a mulher: Consuelo – Consuelo era a mulher dele – vou vender uma vaca para comprar uma peste de aparelho igual ao do Jaime, mode esta fuleiragem comigo. E assim foi. Cada qual com seu rádio falando do seu partido.»

«Essa história de Lampião era que tinha o Tonho Caixeiro, pai do governador Eronides Carvalho, que era o poderoso aqui. Muito mais que os Brito, lá de Propriá. Diz que até em Aracaju o homem andava, mais a Maria Bonita. Gostava de um luxo, da capital. Tinha os coiteiros… O Tonho Caixeiro, quando morreu, deixou 11 fazendas no sertão. Era um homem baixotezinho, filho do Saco dos Bois, ali na Monbaça, ali do outro lado, em Alagoas. “

Na varanda dos fundos da casa do mestre, a visão ia além. Os olhos cravados nas águas repletas de canoas e navios imaginários ou reais. A boca da noite chegava ligeira com o café na mesa esperando. Foto | Canoa de Tolda

«Uma vez, aqui na Fazenda Campo Grande, aí para o centro, Lampião mandou um recado pedindo um trocado. O fazendeiro se negou. Foi então que Lampião mandou uns cabras, que desembarcaram aqui, na canoa Onça, de João Lixandre das Intãs, e puxaram para as Antas – era como chamavam Lourdes. Eram onze. Mataram dezoito vacas, de largar o facão na barriga. Até de vaca prenha, era bezerro espirrando para todo o lado. Foram duas turmas de cabras. Em Lourdes as duas turmas viram a volante botar para cima delas. Tiveram que correr, até com duas mulheres a reboque, a Esmeralda e uma tal de Ana. Deram sorte de escapar…»

«Depois, teve um cangaceiro, que era do bando de Lampião, que conseguiu escapar da bagaceira lá no Angico, o Zé Julião, que depois foi prefeito no Poço. Um caboquinho baixo, assim. Conheci muito ele, peguei na mão dele, não me descola a cabeça. Pois. Entrou no Bonsucesso, numa eleição, e carregou 3 urnas. Ninguém encarou. Ele dizia, quem quiser quevenha, que eu estou levando as urna… Era assim a coisa naquele tempo…e Lampião era quem mandava.”

“Tinha uma canoa, a Mantiqueira, que era de Milício, da Ilha do Ferro, um fino coiteiro de Lampião. Era tudo oculto, mas se falava muito nisso. Um dia, Lampião queria retribuir os serviços e chegou pra Milício: Milício, me diga o que vosmecê quer como meio de se viver… Milício, então, disse que com uma canoa a coisa ficava boa, mas não ousava, pois era c o i s a cara… e Lampião então disse… que faça essa canoa, homem, eu tô mandando… e todo o mês chegava o dinheiro para a paga dos mestres, dos ajudantes e do material… e a canoa ficou um mundo, pra carregar tonelada, principalmente, do sertão para a Passagem…essa canoa, a Mantiqueira, acabou-se ali no pé do Cavalete, em Pão de Açúcar…”

De Valdemar de Ramiro, muitas histórias que ajudam a compor o São Francisco real. Foto | Canoa de Tolda

“Aliás, ali no pé do Cavalete se acabaram outras canoas, como a Igarité, a Solimões, a Buenos Aires – as cavernas dessa aí foram esbagaçadas a machadada para fazer carvão. Era uma canoa linda, feita por Mestre Nenem e Mestre Zuzinha, da Ilha do Ferro… Mestre Nenen não queria que ninguém ficasse olhando quando ele trabalhava, tinha o lombo com um couro que era um dedo, mode o sol…só trabalhava descamisado…”

“Do outro lado, ali em frente, no Bode, se acabaram duas canoas, a Diligência e a Lusitana. Se acabaram ali. A Lusitana, de Cristóvão, carregava pedra, mas um dia ele puxou-la para terra, e a canoa se acabou ali. Em 49 eu andei nela…»

«Depois, muitas canoas subiram para o rio de cima. Ói, tinha um senhor, chamado Moisés Tambangue, morava nas Capoeiras, era dono da Tereza Góis. Bom, vou para o rio de cima [ele]. Nessa linha, ele tinha uma coitada na Saúde, mas fazia a obrigação dele, ajudava a moça. Pois. Quando o carretão, da linha do trem, baixou em Piranhas, ele era pequeno para a canoa. Ele desencaixotou a canoa, abriu os rombos, os fechos, tudo, para deixar a bicha menor – para passar na ponte do rio Moxotó, que era muito estreita. Assim, quando a canoa chegou lá em cima, em Jatobá, atual Petrolândia, já não foi para as águas, foi para terra, onde foi jogada.”

“E foi, e foi, e ele, o homem, trabalhando para refazer a canoa. E a mulherzinha, que tinha ido mais ele, costurando na tolda, quieta. E o dinheiro se acabando. Veja você, com uma obra dessa, sem carrego, a canoa parada, em terra estranha…tudo contra… o dinheiro que restava, já comido de três partes, uma… e o trabalho ainda muito…e, num dia de domingo, ele estava lá, a coitada na costura, um sol medonho, quando veio um senhor, dali
mesmo, meio lorde, que arrodiou, arrodiou, olhando, olhando, e se foi… bom, o que não deixa de não ser…com 5 minutos veio um menino de bicicleta, com um escrito do homem: Mestre, se é por qualquer coisa, o serviço não para…fique tranqüilo, que nada irá faltar, e a primeira carga é minha. Ele mostrou para a mulher, o escrito. Ela quieta foi buscar lá no fundo da tolda, uma malinha de flandres – era o que se usava naquela época – e abriu-la. Pois. Ali estava todo o dinheiro que ele dava para ela, mais tudo o que ela tinha trabalhado, comprando e vendendo criação, negociando com isso, com aquilo. Era muito dinheiro. E ela disse, não vamos precisar de dinheiro dos outros, tome, vamos acabar a canoa e colocar ela na carreira. Nada irá faltar…»

«É, mas o que passou não tem valor…ninguém dá valor…ficou pra trás…Hoje, essa turma nova vive graças à bóia dos véio…se fosse hoje para um pai comer a custa do fio…outra, a nora esticava. Um pouquinho… hoje só que saber onde anda o cartão…O meu cartãozinho é escondido…quando passa na máquina, o papel já sai deitadinho…»

DE CANOEIRO PARA CANOEIRO

Uma pequena história dentro da (do que foi possível contar agora) história de Mestre Valdemar de Ramiro.

Quadrinho do jornal A Margem – Jan/Fev 2010

Em novembro de 2009 estávamos em mais uma navegação, desta vez com uma das lanchas, de entrega de nosso jornal impresso bimestral A Margem, uma das mais bem sucedidas iniciativas de comunicação que conseguimos realizar (entre 2008 e 2010, pela Lei Rouanet). Eram viagens puxadas, que eram realizadas em poucos dias, com a lancha carregada com os fardos que iam sendo deixados com os colegas em povoados e cidades diversos.

Na partida do Mato da Onça, para a distribuição dos pacotes de rio abaixo, Seu Romão, morador do povoado e canoeiro, sabendo de nossa parada nos Escuriais, povoado de Valdemar de Ramiro se chegou: “vocês vão ver Valdemar, então leve isso aqui para aquele canoeiro véio, diga que fui eu” Nas mãos de Romão, uma pequena canoa de tolda, obra de artesão da região. A canoinha foi embarcada na lancha e seguiu viagem. Foi parar nas mãos de Valdemar.

Na viga da parede, a canoinha a inspirar o movimento pelas carreiras que voam no sentido. Foto | Canoa de Tolda

Veja no documentário De Barra a Barra (2009), entrevista com o mestre Valdemar de Ramiro, a bordo da Luzitânia.

♦ Artigos de autoria e opinião não refletem, obrigatoriamente, posições e opiniões da Canoa de Tolda

Imagem em destaque – Mestre Valdemar de Ramiro, da Candelária, a bordo da Luzitânia. Documentário De Barra a Barra | Canoa de Tolda

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