por Carlos Eduardo Ribeiro Jr./Rede InfoSãoFrancisco
Desde 2008 o setor elétrico, através do ONS – Operador Nacional do Sistema Elétrico, vem desenhando e ganhando espaço com seu modelo de operações dos barramentos com vazões mínimas abaixo do Plano de Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco
Às vésperas da adoção da resolução no. 2081/2017 da ANA – Agência Nacional de Águas (veja no pé da página o ofício de comunicação da aplicação da portaria), acreditamos que é importante, por parte das populações do Baixo São Francisco, entender o longo e permanente processo de domínio e apropriação da água majoritariamente por parte do setor elétrico e demais segmentos a ele atrelados por interesses econômicos específicos, onde o coletivo difuso, das pessoas espalhadas pelas margens, não é item prioritário.
O entendimento que deve considerar que o segmento atende a um modelo suicida de sistema econômico – já repetimos essa colocação inúmeras vezes – apoiado no saque ao patrimônio natural e a direitos básicos das pessoas, como um bom meio ambiente e o acesso à água potável de qualidade, para citar os mais evidentes no caso das populações ribeirinhas.
Antes de prosseguir, é necessário, e tal é ponto de insistência nossa há anos, lembrar, nunca esquecer que o Baixo São Francisco teve seu destino selado há quase exatos quarenta anos com a construção da barragem de Sobradinho. Portanto, e mais uma vez reiterando, o modelo de operações implantado em 2013, com a regularização promovendo vazões abaixo de 1.300 m³/s, não foi implantado em uma situação de normalidade.
O rio que tínhamos em março/abril de 2013 era um fantasma do grande Velho Chico, um esqueleto remanescente de anos de passivo vindo das operações dos barramentos, piorado, evidentemente, pelos usos e ocupações majoritariamente predatórios da bacia. Veja o quadro abaixo.
Retomando o tema, veremos que a resolução ANA 2081/2017 estabelece a partir do mês de maio próximo, formalmente como vazão mínima a jusante de Sobradinho (e Xingó, por conseguinte) o ínfimo valor de 700 m³/s (setecentos metros cúbicos por segundo). A linha geral para a resolução é a manutenção de níveis de segurança de água estocada nos reservatórios para o atendimento aos usos múltiplos.
O modelo de operações de barramentos a ser legalizado – e de fato efetivado – com a resolução 2081, como veremos, atende, essencialmente, aos objetivos do setor elétrico a partir de uma intenção manifestada e bem desenhada ao longo dos últimos dez anos. Com a portaria, a água que chega ao Baixo é a sobra, ou como se diz na região “a laminha” daquilo que a a União, os Estados, Municípios e os gestores entendem que cabe a esta imensa população entregue ao abandono, com restrições ou impedimentos de acesso à água. O caso do São Francisco segue a regra do valor que os rios têm para a Nação.
Vamos ter, agora de modo formal, regulamentado, um sistema de operações de barramentos que se sobrepõe ao Plano da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, elaborado pelo CBHSF – Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, onde está claro no texto que o valor mínimo (ainda que claramente insuficiente para manter o rio com saúde, e para tal comprovação não são necessários relatórios técnicos de órgãos oficiais), para a manutenção dos
ecossistemas é de 1.300 m³/s (hum mil e trezentos metros cúbicos por segundo), na chegada ao Oceano Atlântico, na foz.
Mas, esse valor, os especificados 700 m³/s teriam sua origem exata em 2017, apoiados na série de justificativas elencadas pela ANA?
Podemos entender que não. Que se trata, na verdade, de um elaborado processo de consolidação do domínio absoluto da água dos sub-médio e baixo São Francisco, pelo setor elétrico, que percebeu oportunidade de sacramentar seu modelo nos idos de 2008.
Não esqueçamos que, em 2001, quando ocorreram os chamados apagões no sistema de distribuição de energia, foram praticadas descargas de Xingó com o valor de 1.100 m³/s. num ensaio de investida do setor elétrico, que teve o efeito do “pé calçando a porta”. O espaço estava garantido.
Vamos a 2008. Em 3 janeiro daquele ano a questão de redução de vazão foi tema de pauta da 49ª Reunião Ordinária do CMSE – Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico e voltaria a ser abordada na reunião seguinte do CMSE, no dia 10 do mesmo mês.
Na 62ª. Reunião do CMSE, ainda em 2008, em 2 de outubro, o ONS volta a insistir no tema do problema – para o setor elétrico – que seria a manutenção da restrição da vazão mínima de 1.300 m³/s
“…alertou para a necessidade de solucionar definitivamente o problema da restrição da vazão do rio São Francisco. A ANA informou que a redução da vazão do rio São Francisco impacta pontos de captação de água e de navegação, mas sem comprometimento maior de abastecimento e transporte. Salientou que é necessário o envolvimento do IBAMA, em função do licenciamento ambiental que têm como restrição a vazão mínima de 1.300 m3/s.
A ANEEL expôs a sua opinião favorável a redução, ponderando que a ANA deveria coordenar este processo e que o custo da implementação desta medida deveria ser pago pelo setor elétrico.
A ANA concorda com a proposta de coordenar o tema e solicitou ao CMSE o envio de documento formalizando a solicitação.”
Em momento algum, basta ver a ata em sua íntegra, são verificadas abordagens do tema do rio em si, com seus ecossistemas, de sua função relacionada às vidas das populações direta e indiretamente possíveis de serem impactadas. O pouco ou nenhum interesse pela existência de vida de pessoas, bichos, plantas, paisagens já era e seria flagrante nas discussões.
Em novembro de 2008, na 63ª. reunião do CMSE,
“A SEE/MME fez um relato do andamento das negociações com a ANA e IBAMA para expedição da Resolução pela ANA que permitirá a redução da vazão defluente do reservatório da UHE Sobradinho. Informou que na reunião realizada no último dia 20 de novembro o assunto evoluiu satisfatoriamente. O ONS deve emitir Nota Técnica para fundamentar a necessidade da redução da vazão para a segurança do atendimento da região Nordeste. “
A ata da 64ª. Reunião do CMSE, realizada em dezembro de 2008, apresenta que
“A SEE/MME fez também um relato do andamento das negociações com a ANA e IBAMA para expedição da Resolução pela ANA que permitirá a redução da vazão defluente do reservatório da UHE Sobradinho. No momento, estão sendo apurados os custos envolvidos com a implantação desses procedimentos.”
Deixando explicita a tranquilidade quanto à adoção das descargas abaixo de 1.300 m³/s.
É interessante notar o papel atribuído a um órgão da relevância do IBAMA – que deveria ser o órgão primeiro a proteger o Patrimônio Natural nacional – percebido naquele ambiente, tratado como um mero emissor de licenças de operação, as LO. Licenças onde não observamos consideração da já detonada
realidade do passivo nas regiões a jusante dos barramentos desde 1979/80 com a operação de Sobradinho.
A categoria designada ao IBAMA de emissor de documentos viria a ser confirmada com a edição do parecer 4041/2013 que produziria a Autorização Especial 01/2013 para a redução das vazões regularizadas abaixo de 1.300 m³/s no início de 2013, situação que vigora até o presente. O documento foi produzido sem estudo profundo do panorama do São Francisco em 2013 considerando as décadas de regularização a partir de Sobradinho.
Em 2009, na ata da 69ª. reunião do CMSE, realizada em abril onde o Secretário Executivo do Ministério das Minas e Energia relatou
“o trabalho do MME na discussão do Projeto de Lei – PL 1.176-E, de 1995, que estabelece os princípios e as diretrizes para o Sistema Nacional de Viação (eclusas). Destacou a importância da navegação fluvial, mas alertou que o tema não pode impor ao setor elétrico custos adicionais que inviabilizem os projetos hidrelétricos.”
Pela reação contundente, arrogante do setor elétrico, fica claro que não cabem concessões aos demais – e precípuos – usos das águas brasileiras, inclusive, na reunião, não constam na lista representantes do setor navegação. E para finalizar o adendo, o Baixo São Francisco é um exemplo onde as navegações de longo curso foram aniquiladas pela regularização. Um trecho do rio de cerca de 150 km onde navios de porte navegavam de Penedo até Piranhas: haveria necessidade de estudos ou análises técnicas para provar o que foi perdido?
As justificativas de implantações, hoje, de sistemas de operações visivelmente equivocados, atenderiam efetivamente aos usos múltiplos, a começar em haver água boa e em quantidade para as populações, e para o rio e seus seres vivos?
Sobradinho – Quarenta anos
Há quarenta anos foi imposta a regularização do trecho do São Francisco de Sobradinho até a foz, provocando, para as populações a jusante, um traumático drama, porém diverso,daqueles que foram varridos da região do que seria o fracassado reservatório de Sobradinho. Para os inundados e para os secados, até o presente não foram adotadas reparações adequadas.
A quebra dos ciclos naturais do São Francisco significaria o termo de diversos modos de vida intrinsecamente ligados ao rio de milhares de pessoas ao longo das margens. Sim, uma minoria, um punhado de gente para os padrões da época, que seria definitivamente afetada, para pior, a partir da justificativa oficial de que as mudanças trariam benefícios para um maior coletivo. Uma parcela menor da população, atenção, com direitos básicos garantidos pela Constituição, que nunca foram adequadamente apreciados e considerados.
Hoje, quarenta anos depois, temos, no trecho baixo do São Francisco, um passivo socioambiental de grandes proporções que, apesar de tempos de políticas públicas mais participativas, deliberadamente é omitido das discussões para as aplicações das mesmas. Portanto, a questão das vazões regularizadas abaixo dos 1.300 m³/s (estabelecidos pelo Plano da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco), que chegaram ao patamar de 550 m³/s não surgiu em meio a um cenário de qualquer normalidade.
É vital que não seja esquecido o São Francisco de antes dos barramentos, pois ele é a referência de base para todas as discussões a respeito do futuro que deve ser preparado para esta região, ainda que seja impossível o retorno ao rio de antes.
A mostra mais explícita da agressividade crescente do setor viria em julho de 2009, durante a 72ª. Reunião do CMSE, onde o ONS volta à carga quando
“salientou a necessidade de viabilizar a redução da vazão mínima defluente da UHE Sobradinho. Essa flexibilização permite a ampliação da capacidade de exportação da região Nordeste, garantindo a plena utilização da geração térmica contratada.”
Ao afirmar da capacidade de exportação de energia do nordeste, o ONS confirma a constatação de que além de caber ao Baixo São Francisco pesado fardo do passivo socioambiental desde a operação de Sobradinho, lhe é imposto a condição de exportador de riqueza – a região tem um dos piores IDHs do Brasil – através da energia transmitida aos demais rincões do país.
Mais adiante, tendo o conforto dos encaminhamentos bem conduzidos pela correnteza favorável dos canais dos trâmites, no dia 30 de julho de 2009, o ONS abre sua voz através do jornal Valor Econômico que publica uma matéria assinada pelo jornalista Chico Santos, intitulada Comitê Quer Reduzir Vazão Mínima do Rio São Francisco.
O jornal dizia que “O Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico, presidido pelo Ministro das Minas e Energia, Edison Lobão, encampou uma proposta feita pelo ONS – Operador Nacional do Sistema Elétrico, que deve enfrentar forte oposição. Trata-se de obter permissão do IBAMA e da ANA – Agência Nacional
de Águas para que a vazão mínima do São Francisco, a partir da barragem de Sobradinho (BA) seja reduzida dos atuais 1300 metros cúbicos por segundo para um patamar estimado pelo diretor-geral do ONS, Hermes Chipp, de 700 metros cúbicos por segundo”
Ainda, segundo o Valor Econômico, “o Comitê criou um grupo de trabalho, coordenado pela ANA, para estudar a adoção da medida, e pediu rapidez nos trabalhos. A alteração, segundo o Sr. Chipp, seria para reter-se mais água em Sobradinho, quando as chuvas (dezembro a abril) não forem suficientes para a geração de energia na época da baixa. Hoje o IBAMA e a ANA devem autorizar a redução das vazões abaixo dos 1300 metros cúbicos por segundo.
A segunda razão defendida pelo Sr. Chipp, seria dar uso ao parque de geração termelétrica que está sendo instalado no Nordeste, com potência total de 10.200 megawatts (MW) em 2013. Somada a geração hídrica e a termelétrica, o Nordeste ficaria com uma sobra de 2.250 MW que não poderiam ser exportados para outra região, em razão da falta de linhas de transmissão.
Chipp explicou ao Valor que foi criado um grupo de trabalho no âmbito do CMSE, coordenado pela Agência Nacional de Águas (ANA), para estudar a viabilidade e os impactos da proposta. “Pedimos na última reunião (do comitê) que a ANA agilizasse o processo. Evidentemente, terá que haver articulação com o Ministério do Meio Ambiente e com o Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco, disse, ponderando que a necessidade de discussão e de uma solução harmônica torna impossível prever quando a proposta estará em prática.”
Na matéria, o “ONS avalia que, para dar uso às usinas térmicas quando houver necessidade de carga elétrica complementar (períodos de crise em uma ou mais regiões) fora do Nordeste, é mais vantajoso economicamente reduzir a geração hidrelétrica da região, baixando a vazão do rio para poupar água, do que ampliar rapidamente a capacidade de transmissão.
Ainda segundo o Valor Econômico, o objetivo do ONS, com o aval do CMSE, é tornar essa possibilidade de redução automática [de vazões regularizadas] sempre que seja necessário.
Também entrevistado pelo Valor Econômico, na mesma matéria, o engenheiro de pesca José Bonifácio Valgueiro de Carvalho, produtor de alevinos em Propriá (SE) e membro do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco, disse que, na sua região, o impacto de uma redução da descarga de Sobradinho para até 700 m3/s vai ser terrível.
Carvalho citava que a resistência do rio à entrada das marés pela foz, que já era baixa (em 2009), iria diminuir a ponto de tornar inviável a captação de água doce nos municípios mais próximos à foz, como Piaçabuçu e Penedo, em Alagoas, e Brejo Grande e Neópolis, em Sergipe.
Em agosto de 2009, com as negociações bem encaminhadas, conforme consta na ata da 73ª. Reunião do CMSE
“Foi informado pelo SEE/MME o envio do ofício nº 304/2009/SEE/MME para o IBAMA solicitando a elaboração do Termo de Referência para os estudos ambientais para operações das usinas do rio São Francisco com vazões inferiores a 1.300 m3/s.”
Desde então, até o início de 2013, com a estiagem na bacia do São Francisco, o setor elétrico agiu de forma mais discreta. Mas, a partir das operações dos barramentos com as vazões abaixo dos 1.300 m³/s o ONS retoma estrategicamente a condução das discussões, sobretudo quando a ANA implanta uma Sala de Crise do Rio São Francisco através de um sistema de videoconferências.
A cada reunião da Sala de Crise, basta serem acompanhados os vídeos, é tranquila a atuação do ONS dominando o ambiente e estabelecendo, com sucesso, seu modus operandi para a gestão da água. É o órgão o único a apresentar, sob a aquiescência de todos os demais, o modelo/simulação de operações dos barramentos que atende, obviamente, essencialmente, majoritariamente, aos interesses do setor elétrico e seus apoiadores.
Em todos os modelos apresentados, simulações, não estão consideradas as populações difusas do Baixo São Francisco que, sem qualquer voz num processo que se diz democrático, participativo, está há vários anos com problemas de acesso à água de qualidade, situação que piora de forma cumulativa e acelerada.
Cá estamos, portanto, às vésperas da aplicação da resolução ANA 2081/2017 que, com a determinação dos 700 m³/s como vazão mínima legal do São Francisco a jusante de Sobradinho, confirmará a imposição do uso prioritário das águas do rio para a geração de energia, se encaixando com precisão no projeto bem delineado nos idos de 2008.
O uso do rio, como há quarenta anos, permanecerá por um futuro indefinido – a menos que ocorra uma grande e forte mobilização da sociedade prejudicada em seus direitos básicos – essencialmente para atender à demanda insaciável do mercado pelas águas já poucas, limitadas, do rio São Francisco. Em resumo, sem uma reversão do modelo de uso do Velho Chico, o Baixo São Francisco continuará, pelas linhas de alta tensão, um mero exportador de riquezas para as demais regiões do Brasil.
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