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Sexta feira – 19 de abril de 2019

Continuando com a série de artigos Água de Beber, prosseguimos apresentando as tribulações que as populações do Baixo São Francisco vêm enfrentando para garantir seu direito de acesso à água de qualidade. Sem informações sobre a relação entre água contaminada com algas e cloro para desinfecção, população pode estar consumindo água inadequada.

O quadro geral

O Baixo São Francisco, ao final de 2019, contará com cerca de quarenta anos de regularização, a partir da construção da barragem de Sobradinho, em 1979/80. Portanto, o quadro socioambiental que tínhamos no início de 2013 não pode ser considerado como normal. Há seis anos atrás, o passivo socioambiental já era gravíssimo. A mídia em geral, órgãos gestores das águas, de forma insistente, por razões diversas, estabelecem o início de 2013 como um ponto de referência para efeitos de operações de barramentos,  não deixando claro que o passivo pós 2013 piora o que já havia de pior, de forma cumulativa e acelerada.

As faixas marginais, onde a população coleta sua água cotidiana, se encontra invadida por vegetação aquática e algas invasoras. Imagem | Canoa de Tolda

Com a redução das vazões regularizadas no Baixo São Francisco abaixo de 1.300 m³/s[1] desde o início de 2013, as águas do rio, parcas, muito aquecidas, sem velocidade alguma, estão assoladas pela proliferação de algas e vegetação aquática invasora.

Há que se considerar uma situação de alta relevância, sistematicamente afastada das discussões e informações oficiais por parte dos “donos das torneiras” que é o fato de termos no presente o mesmo número de outorgas [2] ativas de 2013 quando têm início as regularizações com vazões reduzidas.

Temos, objetivamente: está sendo retirada do rio São Francisco a mesma quantidade de água anterior à redução das vazões. Da mesma forma, a produção de águas servidas (esgotos, águas de distritos de irrigação, com agrotóxicos, efluentes hospitalares, etc.) é a mesma, devolvidas de forma irresponsável para a calha do rio São Francisco e seus afluentes. [3]. Usuários, populações de modo geral, todos corresponsáveis pela manutenção, proteção e conservação do manancial chamado rio São Francisco, permanecem utilizando a preciosa água com padrões de consumo incompatíveis com a realidade. Um sistema, como já colocamos diversas vezes, suicida.

Lembremos que a vazão chegou, ao final de 2017 ao valor impensável de 550 m³/s, menos da metade dos já citados 1.300 m³/s. O que permite a contabilidade simples de avaliar que a relação de água para a diluição dos efluentes lançados piorou de forma inaceitável (considerando as vazões de retirada, segundo a ANA em cerca de 278 m³/s).

Esta série de componentes, dentre outros tantos, se manifesta pelo comprometimento da qualidade da água do Baixo São Francisco onde a concentração dos chamados nutrientes, é alimento para toda a sorte de organismos animais e vegetais. Estes, encontrando as condições ideais para a proliferação, sem qualquer controle, monitoramento, erradicação, se expandem de forma acelerada, cumulativa gerando a detonação dos ecossistemas nativos e colocando em risco a saúde das populações ribeirinhas – em particular daquelas difusas, espalhadas pelas margens e contra margens, sem qualquer assistência por parte do Estado.

As águas verdes, pela ocupação das algas, ocorrem hoje mesmo no eixo do rio. As algas encontram nas elódeas o suporte ideal para fixação. Imagem | Canoa de Tolda

E, nesse ambiente, temos a explosão da vegetação exótica invasora, em particular as elódeas, as chamadas rabo de raposa (egeria densa) que não são novidade aqui, já instaladas há mais de vinte anos. Por sua vez, também encontrando condições muito favorável, temos as algas verdes (podem ocorrer diversas espécies, e por tal razão omitimos suas nomenclaturas específicas) que, desde 2013 vem ocorrendo com mais e mais densidade, misturadas com a água – inclusive no eixo da calha, no veio da água, com um pouco mais de correnteza – ou em bancos fixados sobre as massas de elódeas ao longo das faixas das margens.

Mesmo em locais do rio com correnteza menos fraca – considerando que nas margens o fluxo é tão fraco, ou inexistente, que o chamado remanso onde ocorreria a contra corrente pode ser considerado inativo – como no eixo da calha, a presença das algas é visível, pela coloração esverdeada da água. São organismos diminutos que quando estabelecidos em grandes colônias, em estrutura mais complexa como véus, se desmancham, se dissolvem, rapidamente, ao serem manejados, tocados.

As captações e o não acesso à água de qualidade

É na faixa marginal que as populações difusas vão buscar suas águas de consumo cotidiano, seja com potes, garrafas, ou ainda praticam pequenas captações com bombas elétricas ou a óleo diesel, de uso considerado insignificante.

Com as variações horárias (as chamadas vazões médias) diárias, a população se vê em busca forçada por um mínimo de água para uso diário. Imagem | Canoa de Tolda

Em povoamentos maiores podem ocorrer sistemas coletivos de captação e distribuição (sem tratamento no sistema) independentes. Neste caso, como no primeiro, o tratamento único ocorrente é através da adição de hipoclorito de sódio distribuído pelos agentes de saúde contratados pelas prefeituras, de modo geral.

Há ainda povoados e/ou vilas com sistemas mais estruturados, instalados pelos Serviços Autônomos Municipais, os SAAE, ou ainda pelas empresas de água como a CASAL – Companhia de Saneamento de Alagoas e o DESO – Companhia de Saneamento de Sergipe.

Em todos os sistemas onde ocorre tratamento para uso humano, o cloro é o produto básico utilizado para a desinfeção da água.

Os possíveis riscos

É nesta mistura algas + cloro onde pode estar um grande problema: é publicamente conhecido, além de comprovado cientificamente que há a ocorrência de um subproduto, os chamados trihalometanos, os THMs [4], um grupo de compostos orgânicos que se originam de matéria orgânica dissolvida que ocorre naturalmente na água, sobretudo da decomposição de materiais orgânicos bacterianos, algas e vegetais.

Os trihalometanos são cancerígenos e trazem preocupação pela contaminação que pode acontecer em redes de abastecimento público, sendo importante o monitoramento e controle destes compostos mesmo em baixas concentrações.

Temos a considerar que, sem dúvida alguma, foi criada uma situação de possível risco – que fique entendido que está sendo levantada uma hipótese, possível, provável que deve imediatamente estar na pauta dos impactos advindos das operações de barramentos no Baixo São Francisco – deveria ter sido discutida de forma ampla e clara, anteriormente à redução das vazões em 2013. Tal não ocorreu.

Foram encaminhados ofícios para o DESO – Companhia de Saneamento de Sergipe e para a CASAL – Companhia de Saneamento de Alagoas que, até o momento da publicação desta matéria, não se pronunciaram.

Consideremos ainda que, desde que seja material líquido e que não tenha interferência na operação direta das máquinas, o setor elétrico pode turbinar praticamente qualquer água onde o quesito de qualidade para consumo humano tenha algum significado: água contendo efluentes de esgotos, com algas, com cianobactérias, com agrotóxicos, com vegetação aquática em certa escala, efluentes hospitalares, etc. Esta facilidade técnica de operações talvez seja um componente no tradicional diminuto ou ausente interesse pelas questões ambientais direta ou indiretamente relacionadas ao sistema (desde o estoque de água nos reservatórios às operações que provocam o monumental passivo à jusante). O conjunto de procedimentos é justificado, de forma quase que metafórica, como para atender aos usos múltiplos (o itálico é nosso).

Notas

1- hum mil e trezentos metros cúbicos por segundo, valor estipulado pelo Plano da Bacia
Hidrográfica do Rio São Francisco.

2- Licenças de captação de água e de seu respectivo lançamento (os efluentes, as águas servidas, que podem ser esgotos, produtos químicos, resíduos diversos que devem contar com tratamento adequado) emitidas pela ANA – Agência Nacional de Águas, por ser o São Francisco um rio de domínio da união.

3- Esta entidade oficiou a ANA – Agência Nacional de Águas, colocando a necessidade de adequação das outorgas (redução,cancelamento, suspensão e outras determinações cabíveis) de forma proporcional à redução das vazões regularizadas. Não foram observados efeitos esperados por parte da agência regulatória.

4- Os THMs constituem um grupo de compostos orgânicos que se consideram derivados do metano (CH4) em cuja molécula três de seus quatro átomos de hidrogênio foram substituídos por um igual número de átomos dos elementos halógenos (cloro, bromo e iodo). Os trihalometanos são, em estado puro, substâncias líquidas (clorofórmio, bromofórmio) ou sólidas (iodofórmio) à temperatura ambiente (10 a 30ºC); de odor característico (uns agradáveis e outros repulsivos); pouco solúveis em água, mas muito solúveis em diluentes orgânicos.

Veja ainda:

ANA – Saiba mais  (informações sobre o rio São Francisco, outorgas, valores de uso das águas, etc.)

CNRH aprova a transposição – notícia que relata a posição da ANA sobre a quantidade de água disponível para a transposição.

Portaria 2914 do Ministério da Saúde – que trata dos padrões de água para consumo humano

Portaria CONAMA 357/2005 – que trata do enquadramento de corpos d’água

Veja abaixo a documentação que foi utilizada como base de informações para a matéria

Imagem do topo – coleta de água para beber – través da Reserva Mato da Onça – Canoa de Tolda

DOCUMENTAÇÃO RELACIONADA

Os trihalometanos na água de consumo humano

Sanepar 

O Uso de Cloro na Desinfecção de Águas, a Formação de Trihalometanos e os Riscos Potenciais à Saúde

Fatores de Risco à Saúde Decorrentes da Presença de Subprod. de Cloração na Água para Uso Humano

ÁGUA E SAÚDE: ANÁLISE DO RISCO DA PRESENÇA DE TRIHALOMETANOS NA ÁGUA PARA CONSUMO HUMANO

Algas e seus impactos em sistemas de abastecimento de água para uso humano

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