Rede InfoSãoFrancisco/ Quarta feira – 15 de maio de 2019
O quadro de não acesso à água de qualidade pelas populações difusas provoca a primeira inspeção judicial do Baixo São Francisco, a partir de uma Ação Civil Pública provocada pela Canoa de Tolda. O problema é causado pela expansão de bancos de algas verdes e vegetação aquática exótica invasora agravado com a redução das vazões em 2013.
Foi realizada ontem, dia 14 maio, Inspeção Judicial no Baixo São Francisco referente à ACP –Ação Civil Pública que tem como objeto a infestação de algas e vegetação exótica invasoras comprometendo o acesso da população ribeirinha à água para uso humano (água potável).
A situação que originou o processo
Há vários anos que já é conhecida a presença de vegetação aquática exótica invasora no Baixo São Francisco, inclusive pela própria CHESF – Companha Hidro Elétrica do São Francisco, que produziu documentação a respeito. Porém, não são conhecidas efetivas ações, a jusante da barragem de Xingó, para seu controle e erradicação.
As algas e vegetações aquáticas invasoras tiveram sua expansão acelerada a partir de 2013, quando a vazão regularizada foi reduzida para abaixo de 1.300 m³/s, valor mínimo estabelecido pelo Plano da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco).
A proliferação de algas verdes é favorecida pelo suporte físico da elódeas, espécie exótica introduzida há vários anos no São Francisco, conhecida localmente como “rabo de raposa”.
As variações de lâmina d’água irrigam a zona de leito de rio secado (hoje invadida por vegetação terrestre de zona úmida) que quando alagada, por sua vez fixa vegetação aquática desenraizada (as elódeas majoritariamente) que morre, entra em decomposição e serve de “alimento” para inúmeros organismos com as
próprias algas que encontram água “adubada” com matéria orgânica farta. Da mesma forma, a vegetação terrestre, com as variações, recuos da água, avança dentro do leito do rio encontrando zona fértil para sua expansão e o problema segue, cada vez mais acelerado e cumulativo.
Os extensos bancos de massa vegetal e algal são ainda maiores e mais densos ao longo das linhas marginais criando inúmeras situações que nitidamente impedem o acesso das populações ribeirinhas a água dentro de padrões adequados de qualidade. O processo de cloração é inadequado para a desinfecção, pois gera subprodutos como os cancerígenos trihalometanos, algo já por nós alertado. E, conhecendo o preço de um bujão de gás na região, da ordem de R$80,00 (oitenta reais) dificilmente a população (que não tem possibilidades de compra de água engarrafada) recorre à fervura para o tratamento do líquido. É uma situação dramática.
A Ação Civil Pública
A ACP foi instalada após a representação realizada na Justiça Federal 2015 tendo como autora a Canoa de Tolda, com o suporte jurídico da equipe de advogados do escritório Jane Tereza Advocacia e Consultoria, com base na realidade das populações difusas do Baixo São Francisco, com seu direito de acesso à água de qualidade seriamente comprometido. São réus no processo: a ANA – Agência Nacional de Águas, a CHESF – Companhia Hidro Elétrica do São Francisco e o IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis.
De nossa parte foram pontuadas várias demandas que possibilitem às populações afetadas meios de terem água em condições padrão de potabilidade. Dentre os quesitos estão o aumento de vazão para a varredura das massas de algas e vegetação e ainda remoção física destas biomassas ( localizadas nos pontos de captação de localidades, povoados e sítios onde o problema é verificado.
A inspeção judicial
O trecho visitado pela Juíza Adriana Franco Melo Machado da 9ª. Vara Federal, em Propriá, SE(situado entre o povoado Curralinho, município do Poço Redondo, SE e Pão de Açúcar, AL – veja mapa com o percurso realizado) se constituiu na primeira inspeção judicial da justiça federal realizada no baixo do rio São Francisco.
Participaram da inspeção, além da equipe da 9ª. Vara Federal, Canoa de Tolda, como autores da manifestação; CHESF – Companhia Hidro Elétrica do São Francisco e IBAMA – Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis, como réus (a ANA – Agência Nacional de Águas, também ré, não enviou representante); MPF – Ministério Público Federal em Sergipe; AGU – Advocacia Geral da União e Marinha do Brasil.
Duas embarcações foram disponibilizadas pela CHESF sendo que a Canoa de Tolda compareceu com uma de suas lanchas de apoio para facilitar as fiscalizações aos pontos críticos (propostos pela Canoa de Tolda, durante a instrução do processo) servindo ainda como base para o drone que registrou a operação.
A inspeção pode observar tanto captações de moradores isolados, em pequenos povoados, como também de sistemas municipais (como os SAAE – Sistema Autônomo de Água e Esgoto) e de operadores públicos, como o DESO – Companhia de Saneamento de Sergipe e a CASAL – Companhia de Saneamento de Alagoas. Em todos eles foi constatada a procedência das nossas alegações e da evidente ausência de qualidade (e quantidade) da água para atendimento ao uso humano das populações afetadas.
Foram vistoriadas captações nas localidades sergipanas do Curralinho, Lagoa, naufrágio da Moxotó, ilha do Belmonte e Bonsucesso (incluindo a porta d’água na grande lagoa abaixo do povoado) e na banda alagoana na Mata Comprida, Mato da Onça, Ilha do Ferro, Traíras, barra do riacho Grande, e captação da CASAL em Pão de Açúcar.
No Mato da Onça, João Silva Santos, presidente da associação de moradores do povoado, pode se manifestar para a juíza Adriana Franco Melo Machado explicando “que a água chega com algas em nossas casas…que pessoas têm problemas de pele e que a situação piorou muito desde que o rio teve suas águas [mais] presas”. Foram palavras que consolidaram o grave problema que afeta todas as comunidades a jusante de Xingó.
Mais abaixo, foi feita parada no naufrágio da lancha Moxotó, onde os participantes da Inspeção observaram um registro da navegação de longo curso no Baixo São Francisco, possível pelas vazões consideráveis que permitiam tal movimentação. A comparação com o presente atesta a desaparição da água. O momento foi aproveitado para alertar o MPF sobre o saque aos naufrágios (com a redução da vazão, inúmeros sítios arqueológicos subaquáticos estão sendo expostos e atacados), situação também apresentada aos IPHAN-SE e IPHAN-AL.
Sempre descendo, no desembarque na ilha do Belmonte, outra situação criada pelo desastre que é a operação dos barramentos: a ilha, hoje não é mais uma ilha, pois seu canal foi completamente secado e obstruído, de modo que o atual território insular ligado ao continente na margem sergipana. Era um canal navegável, profundo e que possibilitava água corrente para a comunidade do Bonsucesso, um povoado não tão pequeno.
Mais adiante, outra prova incontestável da retenção da água pela regularização: uma das grandes portas d’água (nomenclatura local para eclusas artificiais feitas em gargantas, grotões e passagens naturais) da igualmente grande lagoa marginal a jusante do Bonsucesso. Foi evidenciada a diferença de nível entre a passagem da porta e o espelho atual da água do São Francisco. A cota da porta d’água, como outras tantas, comprova que água havia, em abundância.
Finalmente, com derradeira parada para melhor conhecimento da dinâmica hidrológica do Baixo São Francisco (anterior e posterior aos barramentos), a barra do riacho Grande, um dos principais afluentes (intermitente, porém com caudal volumoso nas chuvas de verão) da margem esquerda no alto sertão. Foi mostrada a intrusão do riacho Grande no São Francisco, com um esporão formado por rochas (fragmentadas) e sedimento de grosso calibre que, anteriormente à regularização, era naturalmente removido com as vazões do São Francisco. O esporão do riacho Grande forma um dique de alta densidade que acelera o processo erosivo (e assoreamento a jusante) na margem oposta.
A inspeção foi finalizada no povoado Niterói, no município do Porto da Folha, em Sergipe.
Nota – A Sociedade Canoa de Tolda conta com o suporte jurídico da equipe de advogados do escritório Jane Tereza Advocacia e Consultoria, coordenada por Jane Vieira da Fonseca, professora de direito ambiental e mestre em direito ambiental pela UFC – Universidade Federal do Ceará.
Imagem do topo – Canoa de Tolda | via Rede InfoSãoFrancisco
Você está acompanhando os conteúdos disponibilizados pela Canoa de Tolda e já deve ter sua avaliação a respeito do que é disponibilizado para apresentar o Baixo São Francisco real em contraposição ao oficialmente divulgado.
Tentamos fazer o melhor possível há 21 anos, divulgando como aqui se vive, de fato; apresentando análises sobre situações variadas do quadro socioambiental da região; investigando aplicações de recursos públicos, dentre tantos temas, e também desenvolvemos projetos culturais, como o restauro da canoa de tolda Luzitânia ou ainda pela conservação da biodiversidade do Baixo São Francisco, como a Reserva Mato da Onça e seu programa Caatingas – Meta 2035.
Por isso, para colaborar, faça sua doação. A Canoa de Tolda não pode deixar de navegar.