Desde o início da atuação da Sociedade Canoa de Tolda no Baixo São Francisco, estamos realizando o registro fotográfico da vida ao longo das margens e da zona costeira da região.

A partir de então, foi montado acervo que, atualmente, é composto por cerca de oitenta mil imagens produzidas unicamente pela Canoa de Tolda. A essa coletânea temos ainda inúmeras fotografias cedidas por colaboradores, parceiros ou ainda adquiridas em outras fontes.

Como referência aos vinte anos da Canoa de Tolda em seu movimento completados em 2018, passaremos a publicar uma série de matérias com seleção das imagens mais significativas desde os idos de 1997.

Algumas imagens mais antigas foram produzidas a partir de fotografias em suporte analógico e não tiveram, na época, digitalização adequada, comprometendo a qualidade do registro. Esse material está em processo de recuperação.

O ano de 2003 fecharia com um aumento de vazão significativo do São Francisco a jusante da barragem de Itaparica (acima de Paulo Afonso). Apesar dos prejuízos causados pelas manobras dos barramentos sem o devido preparo das populações, foi uma bela oportunidade de confirmar a grande farsa promovida pelos criadores das redentoras barragens, que viriam eliminar o “flagelo da enchentes”.

Carlos Eduardo Ribeiro Junior

Publicado em 11 de maio de 2019

2003

Nas idas e vindas entre a região da foz e Aracaju, puxando sempre pela SE 100 pois já era evidente que a região seria alvo da expansão desenfreada da especulação, era essencial aproveitar o período das floradas dos remanescentes de paus d’arco amarelos da derradeira mata costeira da região. Aquelas inesquecíveis floradas eram motivo de parada para, em silêncio, contemplar, com a zoada, vindo de longe, da pancada do mar na praia de Santa Izabel.

Imagem | Canoa de Tolda

Na primavera de 2003 tivemos a penúltima grande florada da região, com os paus d’arco amarelos enchendo os olhos. Setembro que fica.

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E se embrenhar na mata para apenas admirar enquanto possível.

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No final de 2003, na rotina dos trabalhos de restauro da Luzitânia, a vida seguia tranquila nas brenhas do isolamento do Mato da Onça. Um inverno bem razoável manteve as caatingas verdes na entrada do verão proporcionando vistas sempre belas das tardes no alto do morro de baixo.

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Naquele ano (2003), a regularização do rio ainda mantinha vazões aceitáveis e a água deixava o beiço do rio próximo do povoado. A vida era, talvez, menos complicada. Mas o ataque à água, pela sua posse, já se organizava silenciosamente, como veríamos alguns anos depois.

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E a água veio. No final de 2003, condições meteorológicas particulares no sub-médio São Francisco e na região próxima e a montante de Paulo Afonso provocaram chuvas torrenciais e a barragem de Itaparica teve aumento grande de sua vazão. Xingó teve seus vertedouros abertos e a água, em poucos dias e depois em poucas horas, atingiu cotas até então lembradas apenas de um reponte do rio no final dos anos 90. Foi uma maravilha, o rio cheio, toldado, com força, correndo e trazendo, ainda que por pouco tempo, a memória das cheias.

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No final do ano, seguindo a tradição da chegada das festas, a pintura da lancha Rosileide, de Clóvis Caldeira, dos Caldeira, família antiga do Mato da Onça, era ainda o exemplo da vida ribeirinha do alto sertão, onde caatingas e vida de barco se misturavam. A pintura de uma embarcação era um evento nas diversas comunidades.

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A canoa pintada, bonita, bonita regra da mão do finado Mestre Dedé, do Bonsucesso, era orgulho para toda a família. Canoa zelada era sinal de situação nas comunidades ribeirinhas. Ainda uma herança das canoas, canoeiros, os mestres do rio.

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Hora de ir para a água, em linhas de madeira dura molhadas, o povo do lugar junto, igual, a zoada, de ‘agora, agora, tudo igual!!! bora, ômi! cabra fraco! e muitos risos, uma cachaça para animar. E, pouco a pouco, o retorno para a água.

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2004

Em janeiro de 2004, no inicio do mês, o rio ainda cheio, largo. O isolamento da base de modo algum era um problema, antes uma grande oportunidade, um reencontro com um rio – não como antes das barragens – mais próximo do velho Velho Chico. Ainda que de cima permanecessem as imposições de que as cheias eram o “flagelo” das populações ribeirinhas. Pois com a água no pé das casas, rostos felizes.

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O Mato da Onça, com a água perto das casas, tomado de uma certa euforia, crianças nas águas antes e depois da escola, brincadeiras, tudo verde. Gente mais velha, olhando, olhando, murmurando memórias.

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Na foz, na praia, o arroz ainda plantado, mas já perto do fim de linha, era espalhado nas ruas de Brejo Grande, SE, para a secagem. Pouco arroz, muito pouco, se o sentido volta anos antes das barragens, o rio solto. Mas a salinização da foz, com o recuo da linha costeira, já era um fato que gradualmente iria comprometer a vida dos ribeirinhos da praia.

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O ano vai correndo, e o rojão das idas e vindas entre a capital e o sertão prosseguem, sempre nos temíveis ônibus da Santa Maria. Viagens realizadas no sentido de viabilizar tanto o restauro da canoa Luzitânia, no Mato da Onça, bem como demais atividades. Dentre as diversas paisagens, no sertão já bem devastado de Porto da Folha, uma chuvinha permite um roçado de milho.

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As paisagens ao longo da estrada SE 100, entre Pirambu e Pacatuba, na região da foz, eram incansáveis e faziam parte do roteiro de rotina. Viagem longa, muitos quilômetros de chão esburacado, mas era bom.

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Ainda na SE 100, os trechos da região da Ponta dos Mangues, em Pacatuba, naqueles anos ainda com pouca frequência de pessoas, tinham garantida a qualidade da água das lagoas das restingas e dunas.

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Já na APA de Piaçabuçu, na foz, em Alagoas, começam a se intensificar os grupos de turismo de massa, sem qualquer critério, sem fiscalização por parte dos órgãos ambientais, dão início a um processo de devastação de zona extremamente sensível.

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Na outra margem, no povoado Saramém, em Brejo Grande, em escala menor, porém não menos predatória, a ocupação e usos insensatos também traçavam o futuro nada promissor da região.

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A tarde tranquila na margem do povoado ainda permitia, no abrigo do casco quente ( e do vento fresco) , alguns momentos de reflexões, devaneios e saudades antecipadas de momentos e paisagens com data de validade bem definidas para um futuro próximo.

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A conhecida barra das Araras dos canoeiros, atual povoado da Ponta dos Mangues (Pacatuba, SE), compõe o extremo sul do estuário do São Francisco. Ali estiveram localizadas as derradeiras salinas que abasteciam os portos de Aracaju e Penedo. E, daqueles lugares, para outros cantos do país.

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O sal da barra das Araras, pelo canal da Parapuca, chegava ao São Francisco e, dali, para outras regiões, para o sertão. Embarcado no trem em Piranhas, chegava, a partir do porto de Jatobá, ao alto São Francisco. Viajava, o sal.

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A barra, móvel, seguia a dinâmica da zona costeira do São Francisco, de acordo com o transporte de sedimentos durante os ciclos naturais das cheias, e os ventos dominantes de nordeste, no verão, e de sudeste, no inverno. Era uma alternativa, a barra, para embarcações que demandavam o porto de Aracaju, que assim evitavam a temível barra do São Francisco com seus bancos de areia.

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A pressão especulativa (imobiliária) causada pela construção da ponte Aracaju-Barra dos Coqueiros deu início à uma acelerada e previsivel detonação da região, hoje muito próxima da zona metropolitana de Aracaju (menos de 100 km). O asfaltamento sem qualquer critério socioambiental da SE-100 (realizado em 2018/19) será a pá de cal para o fim do patrimônio natural do litoral norte de Sergipe.

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Ao final de 2004, a ligação entre os pequenos povoados do alto sertão era essencialmente por via fluvial. Ainda persistiam as derradeiras lanchas de passageiros entre as localidades e as sedes dos municípios. Mas já era o fim da navegação regular de pequeno curso que garantia o acesso mínimo entre a população espalhada e serviços essenciais nas sedes dos municípios.

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Imagem em destaque no topo – Romildo Calafate em sua peleja, no porto de baixo, Pão de Açúcar – Imagem | Canoa de Tolda