HISTÓRIA | NAVEGAÇÕES | PATRIMÔNIO NAVAL
por RUBENS RODRIGUES DOS SANTOS (1) |QUARTA-FEIRA – 16 DE SETEMBRO DE 2020
Em 1959, o jornalista Rubens Rodrigues dos Santos, ganhador do Prémio Esso de Reportagem de 1958, faz publicar no jornal Tribuna da Imprensa, do Rio de Janeiro, uma série de reportagens sobre o Rio São Francisco, resultado de sua viagem pela Região, durante várias semanas, desde o Médio até o Baixo curso do rio.
Foram dez publicações, entre 2 e 23 de outubro, em que o experimentado jornalista descreve, minuciosamente, todo o Vale do São Francisco, concluindo com parte derradeira, de Piranhas até a foz, destacando ainda Pão de Açúcar, Traipu, Propriá e Penedo. Particularmente sobre essa última seção do rio, o repórter oferece um texto riquíssimo em informações, evidenciando os diversos tipos de embarcação, descrevendo com extrema maestria as suas características e a sua utilização pelos ribeirinhos.
Embarcamos, ao anoitecer, numa canoa de tolda que se apresta a deixar Piranhas, rumo à cidadezinha de Pão de Açúcar. Mal nos instalamos por cima de alguns sacos de algodão, começam os preparativos da partida. Soltam-se as vergas, desfazem-se as cordas que prendem os panos, içam-se os traquetes, recolhe-se a prancha e desatam-se as amarras. E eis-nos em viagem, descendo outra vez o São Francisco.
A habilidade do mestre de bordo assombra-nos. Navegamos no escuro, contra o vento, por sítios eivados de obstáculos. Num frio golpe de espera, pedras enormes rasgam continuamente o ventre deslizante do rio. Remoinhos e corredeiras levam no bojo a mentira e a pressa das águas. Aqui e ali o canal se estreita, apertam-se por entre barrancos escarpados, dobra-se, volteia morros, e novamente se enrosca, indeciso, difícil. Mas, mesmo assim, o mestre prossegue sem dificuldades, bordejando de um barranco a outro, decompondo com o ardil de suas manobras a oposição constante da brisa.
Deitados de costas sobre a carga, olhamos o espaço e sentimos a grandiosa quietude do que é eterno. O céu abre-se para receber nossos devaneios e as estrelas transformam-se em sonhos de luz. Um silêncio macio envolve-nos em fofos abafos de alcovas. Ouvimos somente o ranger das vergas e o leva marulhar das águas cortadas pela proa. Embala-nos a doce mudança de inclinação que acompanha a virada dos panos. As pálpebras pesam-nos. Cerram-se os olhos para a noite profunda que há no alto é continuamente revolvida pelos mastros e pelas vergas.
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Estamos em Pão de Açúcar, aguardando uma oportunidade para prosseguir viagem rio abaixo. A lancha de carreira, que três vezes por semana desce até Penedo, partirá somente depois de algumas horas, o que nos deixa tempo de sobra para visitar alguns carpinas fabricantes de canoas e com eles aprender a terminologia descritiva das embarcações utilizadas em todo o Vale do São Francisco.
Seguimos pela praia, e aqui e ali vamos encontrando, na parte mais alta do barranco, os sítios onde se constroem canoas de tolda, chatas e taparicas. Não há propriamente um estaleiro: as peças são trabalhadas sobre a areia e depois armadas ao ar livre, sem proteção alguma.
A menor embarcação encontrada no baixo S. Francisco é a canoa de um pau só, ou taparica, que eles constroem escavando e arredondando um tronco de madeira de lei: Arapiraca, amarelo e baraúna. A proa e popa são afiladas a capricho, de maneira a se obter uma quilha cortante, que avance com facilidade sobre a água. Tem de vinte a trinta palmos de comprimento e é impulsionada tanto à custa de remo ou de varejão, como também da loló, um pano rústico, de formato quadrangular, que permanece esticado graças ao mastro vertical e à verga, assentada obliquamente.
Essas embarcações recebem ainda os nomes de charita e de canoa de pescador, principalmente quando o seu tamanho chega a aos quarenta ou cinquenta palmos, ou então quando elas sofrem algumas alterações destinadas a aumentar-lhes a largura. Está neste caso a prática comum de abrir de ponta a ponta uma taparica e assentar-lhe entra as metades uma tábua. Fixa com cavername de raiz de baraúna, de maneira a duplicar-lhe a capacidade de transporte.
No baixo São Francisco encontram-se também embarcações de tamanho médio, denominadas chatas, com um comprimento que varia a setenta palmos. Têm fundo pouco abaulado e são construídas à custa de cavername de madeira rija e de uma rombeação de tábuas de cedro. Sua capacidade é apreciável, sendo utilizadas comercialmente no transporte de cereais, açúcar, algodão e farinha. Impulsiona-as o vento soprando em dois grandes panos triangulares, um aberto no mastro de vante e outro no mastro de ré, um estirado para bombordo e outro para boreste, ao longo de vergas que se projetam por sobre a água.
A maior embarcação a vela encontrada no baixo São Francisco é a canoa de tolda, com oitenta, noventa e até cem palmos de comprimento. Sua capacidade de transporte é superior à da chata; e ela é utilizada, como esta, na condução de gêneros alimentícios, matérias-primas e utensílios diversos.
É construída com cavername e rombeação de madeiras de lei. Sua proa, afilada, é coberta por uma armação arqueada de tábuas ou de palha, que se estreita, acompanhando o estreitamento do costado. Sob esta tolda, de dois metros de largura por uns quatro de comprimento, abrigam-se mercadorias perecíveis, tripulantes e eventuais passageiros, que se amontoam num abafamento e num mau cheiro peculiares aos porões de navios. Este tipo de embarcação também é impulsionado pelo vento sobre dois grandes panos de formato trapezoidal, os traquetes, um estendido no mastro e nas vergas de proa, outro desfraldado à ré.
Além dessas embarcações à vela, no trecho de rio que vai de Piranhas à foz, trafegam lanchas de motor “diesel” para passageiros e cargas(2). São de propriedade particular, vindo daí, certamente, a regularidade e os bons serviços que prestam às populações do baixo São Francisco.
A Comissão do Vale, em dezembro de 1958, encampou os bens da empresa possuidora dos dois maiores barcos em tráfego na região: vapores movidos por hélice, casco de chapa, mas obsoletos e completamente estragados. Um deles, o Penedinho, foi encostado como irrecuperável; o Comendador Peixoto (3) permanece imobilizado em reparos que se eternizam. Isso significa que a CVSF nada faz em benefício do transporte de passageiros e cargas neste trecho do rio, a não ser remunerar – com um total de 65.000 cruzeiros mensais – os 19 funcionários inativos da organização que encampou.
Cabem aqui algumas indagações: não sabia a Comissão do Vale do São Francisco que esses dois barcos eram velhos demais e irrecuperáveis? Se sabia, por que encampou a empresa? Por que não constituiu uma nova companhia de transportes, bem aparelhada, possuidora de lanchas modernas, adquiridas com o dinheiro disponível para compra desses dois autênticos ferros-velhos? É preciso que se apurem quais as verdadeiras razões e quais os responsáveis por essa negociata lesiva aos interesses da região e do país.
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Partimos de Pão de Açúcar rumo às cidades de Propriá e Penedo, grandes centros produtores de arroz do Baixo São Francisco. A nossa lancha é veloz e avança com a força de uma cunha que se cravasse continuamente na distância. O rio atira-se, livre agora dos obstáculos. De um lado e de outro, altos barrancos de relva elevam-se a prumo e logo se arredondam em colinas revestidas de vegetação abundante. O verde domina a paisagem. Um verde lustroso, nédio, contínuo, espalhado a perder de vista. Um verde nascido de terra forte, de terra criadeira, de terra dignificada de húmus. Ficou para trás a palidez da e do agreste e agora as cores brotam vivas na face robusta da zona da mata.
Traipu surge à nossa frente, encarapitada no alto de um promontório audacioso. Aproxima-se, amplia-se, revela-se por inteiro, passa lentamente ao nosso lado, e logo desaparece lá para trás. As águas continuam lisas, convidativas ao corte da quilha, e a brisa chega tão mansa quanto um toque de plumas. Mastros e velas de embarcações que vão e vêm definem a geometria do rio: velas quadradas, triangulares, trapezoidais; mastros perpendiculares e mastros oblíquos.
Propriá e Penedo são as duas irmãs venturosas da foz. Cidades prósperas, têm sua economia estabilizada graças à cultura de cereais, principalmente de arroz, cujo plantio é feito nas ilhas e nas margens inundadas periodicamente, ou então nas lagoas formadas na época das enchentes. À medida que as águas recuam, as mudas vão sendo espetadas na terra coberta ainda por um palmo d’água.
Esse trabalho de transplante do arroz é feito por sua maior parte por mulheres e crianças, que recebem o vil pagamento de vinte ou trinta cruzeiros por dia de trabalho. Maltrapilhas, sujas, passam horas e mais horas na umidade da lama, vestes encharcadas, mãos e pés engelhados e endurecidos. Frequentemente, buscam no álcool a energia e o conforto reclamados pelo seu organismo depauperado. E assistimos, então, a cenas constrangedoras: mães e filhas compartilhando na mesma garrafa de aguardente! Crianças de dez, doze, quinze anos, magras, esfarrapadas, sujas, trabalhando bêbadas nos arrozais de Propriá.
Chegamos, finalmente, à foz do São Francisco. E assim terminamos a nossa jornada.
Durante esses dois meses de viagem, experimentamos as mais variadas emoções: enlevo diante das paisagens deslumbrantes, comoção diante de cenas tristes, esperança diante de algumas promessas, revolta diante da incúria dos homens. Sentimos tudo isso. Mas que dizer agora, neste final, como fecho de uma narrativa assim tão variada? Discorreremos sobre o estado deplorável de um vapor? Narraremos a desdita de um barqueiro? Falaremos do abandono das terras ribeirinhas? Não!! Não, porque isso está condicionado à atuação dos homens. Nosso comentário final deve referir-se, portanto, aos administradores e políticos que têm em mãos os meios para agir na área que acabamos de percorrer.
Pesquisa e organização
Etevaldo Amorim
Notas e referências
1 -RUBENS RODRIGUES DOS SANTOS. Engenheiro, jornalista, cineasta. Faleceu em São Paulo, a 27 de agosto de 2000, aos 75 anos, quando trabalhava do jornal O Estado de São Paulo. Em 1959, conquistou o Prêmio Esso de Jornalismo com a reportagem Diário de um flagelado das secas.
http://memoria.bn.br/DocReader/364568_19/9932
2 – A essa época, faziam a linha Penedo-Piranhas as lanchas da Empresa Fluvial S. Barreto Filho (depois Empresa Fluvial Tupan, de Sebastião e Luiz Barreto). Inicialmente, com a lancha Tupigy e Tupy, cujo formado original não contemplava a torre de comando, adotada somente no início da década de 1970. A Tupan veio depois, tendo feito sua primeira viagem em julho de 1956. Será esta, provavelmente, a lancha a que o autor se refere. Foto: Rubens Rodrigues dos Santos_foto_1959. Tribuna da Imprensa.
3 – O Comendador Peixoto ainda navegou até meados da década de 1960.
NOTA:
Artigo foi publicado originalmente no BLOG DO ETEVALDO http://blogdoetevaldo.blogspot.com/2020/09/sao-francisco-rio-missionario.htm
Solicitamos que, caso algumas delas seja do seu interesse para utilização em qualquer trabalho, que faça uso tirando o maior proveito possível, mas fazendo também o necessário registro de autoria e a citação das referências. Isso é correto e justo.
Sugestão de registro de referência:
SANTOS, RUBENS RODRIGUES DOS. SÃO FRANCISCO, RIO MISSIONÁRIO. Rio de Janeiro, outubro de 1959. Disponível em: http://blogdoetevaldo.blogspot.com/2020/09/sao-francisco-rio-missionario.html. Acesso em: dia, mês e ano.
O autor
Etevaldo Alves Amorim (Campinas-SP, 29/07/1957). Engenheiro Agrônomo, tem várias obras publicadas: Pão de Açúcar – Cem Anos de Poesia – Coletânea, Maceió: ECOS Gráfica Editora, 1999 (org.); Terra do Sol – Espelho da Lua, Maceió: ECOS, 2004; Freitas Machado: Vida e Obra, Maceió: EDUFAL, 2011. Publicação em periódico: Braúlio x Brayner: A Pena e a Espada, in Revista do Arquivo Público de Alagoas, Maceió: Arquivo Público de Alagoas, ano 2, n. 2, 2012, p. 127-152. Mantenedor do Blog do Etevaldo – História e Literatura: www.blogdoetevaldo.blogspot.com.
Imagem em destaque – A canoa de tolda Filha da Floresta no porto de Piranhas (cerca 1950). Acervo: Marcos Medonça
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