ARTIGO

ESCOBAR FILHO (1)

Nos anos quarenta do século vinte, o jornalista Escobar Filho, do sul do Brasil relata sua permanência em Pão de Açúcar,  proporcionando mais um interessante registro da vida no alto sertão do Baixo São Francisco 

“PÃO DE AÇÚCAR – Dezembro de 1944.

Quando eu disser ao carioca que estou em Pão de Açúcar, há de parecer que escolhi o recando do caminho aéreo para morar. Não haveria aí nenhuma novidade, pois lá morou, por muitos anos, o desenhista José Maria Sampaio, que fazia as célebres “caruetas”, perfis recortados a tesoura e que hoje está lançando uma revolução na pedagogia com o ensino do desenho pela música. Nasceu no Pão de Açúcar uma filha do conhecido artista da tesoura feita lápis. Todos os jornais cariocas já publicaram seu retrato. Uma menina bonita – Paulina Pão de Açúcar Sampaio.

O vapor Penedo, conhecido como “Penedinho”, com duas canoas de tolda no porto de Pão de Açúcar. Acervo do autor.

Mas o outro Pão de Açúcar, aquele onde estou no exercício de funções fiscais e de onde escrevo, fica à margem do Rio São Francisco. Não sei por que lhe deram esse nome. Um pequeno morro que a seta indica numa das fotos parece mais com a Urca. Enfim, já existe o nome e a cidade que ele abrange é das mais interessantes da Região que aqui se chama o Sertão.

Sertão, a rigor, não há mais. Boas estradas, quer de construção do Estado, quer do Serviço de Obras Contra as Secas, ligam todos os núcleos povoados de Alagoas. Vai-se num dia de Maceió às cidades mais distantes, de automóvel ou de “sopa’, denominação dos ônibus nesta zona. Era Sertão quando os bandoleiros talavam as suas caatingas. Lampião, aliás, nunca entrou em Pão de Açúcar, mas andou bem perto e não muito longe foi abatido. Conheci agora um dos participantes da expedição que derrubou o rei do cangaço. O antigo cabo Anacleto, hoje aspirante, que por sinal se encontra preso, acusado de uxoricídio.

Pão de Açúcar pode ter o nome de cidade. Boas casas, ruas pavimentadas, igreja, grupo escolar, jardins, um serviço de alto-falantes e o controle do movimento de exportação, por via fluvial, de toda a produção algodoeira da zona.

O seu prefeito(2) é um homem viajadíssimo e as grandes firmas do lugar são constituídas de elementos afeitos às exigências da civilização nos grandes centros. Água encanada, luz, cinema – embora as instalações sejam ainda um tanto precárias – completam o quadro de Pão de Açúcar para dar-lhe de fato, como já tem de direito, o nome de cidade, onde vive uma população de quase cinco mil almas.

Muito calor, não há dúvida. Mas as noites muito agradáveis. Passam-nas aqui, obrigatoriamente, os turistas que visitam a cachoeira de Paulo Afonso e vêm da Pedra, a criação do gênio caboclo de Delmiro Gouveia, pela estrada de ferro até Piranhas, para desceu o rio até Penedo ou Propriá. Todos acham curioso encontrar aqui uma cidade com as características de Pão de Açúcar.

É pena que a luz de apague às 22 horas. Como Tântalo, à beira do rio, os concessionários da luz elétrica não usam a água como elemento gerador e sim a lenha. Daí o racionamento.

A igreja Matriz, na avenida Bráulio Cavalcante. Acervo do autor.

Também esta palavra medonha não e ouvida noutros setores. Há de tudo. Legumes pouco, mas frutas, bastante. Gêneros alimentícios também. A feira da cidade é na segunda-feira. Desde a madrugada, começam a chegar as canoas de tudo que pode ser objeto do comércio. Canoas magníficas, extensas e largas, com os velames amplos e as toldas na popa(3) em condições de permitir que se armem redes para as madornas suaves.

Há um só hotel na cidade, o de Adelina. Diz o “Talmud” que o celibatário não é um homem. Não acusa, entretanto, as mulheres que não se casam. Dona Adelina não se casou. Seria descortês perguntar sua idade, mas nas nossas conversas, (gosto muito de conversar com a boa velhinha) vim a descobrir que 1914 ela já tinha passado da idade de casar. Comprou, nessa ocasião, um papagaio por 700 réis. O louro de sete tostões ainda vive e confesso que com ele consegui acreditar que os papagaios falam. Até agora a linguagem dos papagaios parecia existir (pelo menos para mim) nas anedotas que ele ilustra, tanto nas que podemos contar em voz alta como nas outras, as clandestinas, impróprias dos salões. (V. sabe aquela do papagaio?)

Dona Adelina concentrou suas atenções no louro, hoje trintenário. E a gente entende tudo que ele fala. Fico observando os movimentos da língua do papagaio. Ele fala e canta. Sua canção é a “Beata”, uma sátira às velhas que não saem da igreja. A dona do hotel, apesar de católica, não é beata e gosta da cantiga que o papagaio aprendeu.

Perguntei a D. Adelina qual era o preço dos aluguéis das casas em Pão de Açúcar. Ela comprou o sobrado do hotel por seis contos. (vamos falar na moeda antiga que tem o sabor dos pronomes mal colocados).

D. Adelina respondeu:
– Agora já não há mais casas de dez nem quinze mil réis por mês. Subiu tudo. Só se arranja casa de trinta e quarenta e parece que há até de oitenta mil réis.
Uma dúzia de ovos, dois mil e quinhentos. Uma galinha gorda, sete mil réis. Não há fila para carne. A manteiga e os queijos vêm de Jacaré dos Homens, um Distrito do Município. Fabrica-se o guaraná em Santana do Ipanema, município vizinho. A cerveja é mais barata do que em cidades mais próximas dos grandes centros, como por exemplo Campo Grande, em Mato Grosso, que fica a dois dias de São Paulo, e onde a cerveja custa seis cruzeiros, quando em todo o Estado de Alagoas custa quatro.

Avenida Braulio Cavalcante. Acervo do autor.

Convém notar que estes preços não revelam, como pode parecer, uma cidade em decadência. Ao contrário, nota-se aqui muito progresso e atividade. O algodão e o arroz já formaram uma pequena elite de capitalistas. Não há mendigos. Todos trabalham e o comércio de utilidades é bem instalado.

O que há é a desambição, talvez. E, sobretudo, equilíbrio com certas praxes que se vão eternizando. As passagens dos navios, por exemplo, não se alteraram. Uma viagem até Propriá, com camarote de bons beliches, custa onze mil e novecentos réis. Juntando a isso o café e o almoço não passa de vinte mil réis. E são oito horas de viagem.

O mais curioso é que os vapores, descendo o rio, ganham das canoas, mas na subida perdem. Todos preferem subir de canoa por causa do vento. A viagem é pitoresca. Ora chegamos a uma cidade alagoana, ora a uma sergipana. Traipu ou Gararu. Propriá ou Colégio. Penedo ou Vila Nova (4). A emulação é interessante. Ora vence o orgulho alagoano, ora o sergipano.

Os homens de Pão de Açúcar, neste momento, só estão preocupados com um coisa: com a abertura da agência do Banco do Brasil()v. O Sr. Marques dos Reis(6) já recebeu o relatório do técnico bancário que foi estudar a Praça e tudo indica que a cidade será incorporada à rede do nosso principal estabelecimento de crédito.

Não estou convidando ninguém para vir morar em Pão de Açúcar. Vindo muita gente, tudo mudará. Mas a verdade é que, apesar do calor, e aceitando o velho nome de Sertão para esta zona, podemos dizer que Pão de Açúcar é um oásis. Quem está cansado de ficar na fila, pode descansar aqui”.

Artigo transcrito da revista CARIOCA, RJ, nº 484, 30 de dezembro de 1944 e publicado originalmente no Blog do Etevaldo http://blogdoetevaldo.blogspot.com/2020/05/pao-de-acucar-oasis-do-sertao-alagoano.html?m=1.

1- Francisco Escobar Filho, jornalista e escritor capixaba. Era também Agente Fiscal do Imposto de Consumo do Ministério da Fazenda. Nasceu a 25 de agosto de 1901, filho de Francisco de Lima Escobar Araújo e de Leocádia Ribeiro Escobar. Faleceu a 10 de outubro de 1966, na cidade de São Bento do Sul, Estado de Santa Catarina, aos 65 anos de idade.

2- Prefeito de Pão de Açúcar, Augusto de Freitas Machado (18/06/1941 a 14/01/1947)

3- Na verdade, a tolda se localiza na proa da canoa.

4- A essa época, Vila Nova já tinha recebido a nova denominação de Neópolis pelo Decreto-lei nº 272, da Interventoria Federal no Estado, de 30 de abril de 1940.

5-  Pão de Açúcar só receberia uma agência do Banco do Brasil cerca de 30 anos mais tarde, em meados da década de 1970.

6-  Presidente do Banco do Brasil (30/11/1937 – 20/10/1945).

O autor

Etevaldo Alves Amorim (Campinas-SP, 29/07/1957). Engenheiro Agrônomo, tem várias obras publicadas: Pão de Açúcar – Cem Anos de Poesia – Coletânea, Maceió: ECOS Gráfica Editora, 1999 (org.); Terra do Sol – Espelho da Lua, Maceió: ECOS, 2004; Freitas Machado: Vida e Obra, Maceió: EDUFAL, 2011. Publicação em periódico: Braúlio x Brayner: A Pena e a Espada, in Revista do Arquivo Público de Alagoas, Maceió: Arquivo Público de Alagoas, ano 2, n. 2, 2012, p. 127-152. Mantenedor do Blog do Etevaldo – História e Literatura: www.blogdoetevaldo.blogspot.com.

Imagem em destaque – Avenida Braulio Cavalcante, década de 1940. Foto: via autor

O artigo não reflete, necessariamente, as opiniões do site que busca manter diversidade de idéias que contribuam para discussões construtivas voltadas para as questões socioambientais do Baixo São Francisco.