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Oficial x real: matéria do Comitê da Bacia do São Francisco não contribui para o conhecimento adequado da situação das consequências das regularizações abaixo de 1.300 m³/s enfrentadas pelas populações do Baixo São Francisco

Na semana passada, em vídeo promocional do CBHSF – Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco sobre o município de Gararu, SE, foram veiculadas citação e imagens relacionadas que nos fazem refletir como recursos vindos da cobrança do uso da (pouca) água do rio São Francisco são aplicados no segmento assessoria de comunicação, divulgação, campanhas e assemelhados de um órgão público. E, por conseguinte, se os materiais produzidos, de fato, garantem o acesso às informações direta e indiretamente relacionadas com o modelo de rio – e vida – que são impostos há dezenas de anos às populações do Baixo São Francisco. Informações que podem possibilitar, dependendo de sua qualidade, a urgente reflexão das ações e reações que a sociedade deve adotar para a tentativa de um futuro menos sombrio.

O vapor Paulo Afonso, em Piranhas, comprova, de fato, a saúde do caudaloso São Francisco, no início da navegação fluvial de longo curso. Imagem | Abílio Coutinho – 1869

O vídeo disponibilizado no site (assista clicando aqui) apesar de produção direcionada para a divulgação de informações culturais, não contribui para os adequados conhecimento e entendimento da grave situação socioambiental que afeta o Baixo São Francisco (sobretudo para pessoas que não conhecem a região e seus problemas, ausentes da grande mídia nacional). A peça publicitária se constitui ainda, em algo de gosto duvidoso, se contrapondo a ao drama a que as populações ribeirinhas vivem desde a operação de Sobradinho, em 1979/80 e as sucessivas barragens construídas, culminando com Xingó, nos anos noventa.

Segundo o texto do vídeo: “as canoas são como borboletas, com suas asas coloridas em forma de velas, anunciando que ainda existe água no rio São Francisco’…” Podemos imaginar que, provavelmente, o autor se refere às velas de embarcações que seriam comparadas às asas de borboletas, em referência invertida dos tempos em que o rio, sim, com água, muita água naqueles tempos que se distanciam, tinha o movimento das grandes canoas que subiam da praia para riba, para Propriá, para o sertão, com seus panos abertos. As canoas citadas, sendo as pequenas embarcações da foto, constituem o remanescente de
uma navegação difusa (ver texto no Relatório – Campanha de Avaliação – Impactos Redução de Vazão no Baixo São Francisco – Agosto 2013 editado pelo CBHSF) com calado carregado da ordem de 10 cm, permitindo flutuabilidade em qualquer diminuta quantidade de água existente, não sendo, portanto, a prova contundente do rio com água divulgado pela matéria.

Ainda no mesmo vídeo, as imagens aéreas do rio no trecho de Gararu deixam claro o seu leito seco por onde, de fato, era possível a navegação por embarcações de maior porte anteriormente ao início das reduções das vazões regularizadas, no início de 2013.

Na segunda metade do século 20, a Marinha do Brasil ainda percorria o Baixo São Francisco em missões de patrulha, apoio médico e sanitário. Imagem | Marinha do Brasil

Permanecendo no tema sobre a existência ou não de água no São Francisco, é interessante conhecermos a qualificação atual do mesmo, vinda dos moradores do Baixo São Francisco, os que vivenciaram cheias, do rio correndo solto, sem barragens, a expressão sobre o que hoje passa defronte aos nossos lugares é clara: ‘o São Francisco hoje está morto, é um fiapo d’água’. Fiapo d’água.

O aspecto positivo, pedagógico, ao nos defrontarmos com este tipo de material de comunicação é a reflexão sobre o real papel que órgãos integrantes do sistema de gestão do rio São Francisco desempenham, sobretudo quando temos uma injusta, danosa, situação de domínio do uso da água por segmentos específicos, em particular o elétrico.

Não são meros pequenos detalhes, num miúdo vídeo, talvez insignificantes, que passariam desapercebidos. São elementos componentes do brutal desmantelamento da memória do que este rio de São Francisco foi, com água – que nos últimos vinte e poucos anos desapareceu rapidamente,
com a percepção de que vinte anos em tempo geológico é um sopro – insistindo, com muita água que hoje se esmaece e é fantasiada, por parte dos chamados gestores, com qualificações, nomenclaturas, como “situação hidrológica confortável”; usos múltiplos;

Talvez mais construtiva, urgente, seria, por exemplo, a apresentação e discussão pública da resolução 2.081, de 04 de dezembro de 2017 da ANA – Agência Nacional de Águas, que entrega numa bandeja legalizada as águas da bacia à supremacia do ONS – Operador Nacional do Sistema Elétrico, o real operador das torneiras das águas (veja o artigo Quem Pilota os Destinos Desse Rio), com a inaceitável cereja do bolo: os 700 m³/s de vazão mínima, valores urdidos desde 2009, quando foram por nós denunciados, sem qualquer reação contrária.

Não esqueçamos, atenção, de que a vazão mínima – mínima, mesmo, não as devastadoras vazões médias mínimas – estabelecida pelo Plano da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco são os já poucos 1.300 m³/s.

Sim, ainda existe água no São Francisco: a água salgada, não potável, salobra, no melhor dos casos, na região da foz, pelo avanço do mar em seu fraquejado estuário; a água verde das algas instaladas, que não param de se alastrar, do veio da água às margens; a água quente e parada nas imensas zonas secadas onde sequer há peixes, aratanhas, camarões; a água malcheirosa, gordurosa, repleta de caramujos e massa de vegetação morta, fermentando em suas margens, se acumulando com as “marés” diárias, da barragem de Xingó, espantando as gentes do beiço do rio, onde menos e menos crianças brincam nos finais de tarde, no início da boquinha da noite: margens mais e mais quietas. Essas são exatamente algumas das águas existentes na parte que nos cabe neste aquafúndio, se podemos parafrasear a inesquecível canção de Chico Buarque de Holanda. É muito pouco, ou quase nada.

Notas

Em 2019/2020 o São Francisco completa cerca de quarenta anos da entrada em operação da barragem de Sobradinho. São décadas de impactos profundos, cumulativos e crescentes que determinaram mudanças definitivas nas vidas das pessoas e dos ecossistemas aquáticos e ripários dos Sub Médio e Baixo São Francisco.

A recente movimentação da PGR – Procuradoria Geral da República (veja artigo aqui) na direção de tornar os danos ambientais imprescritíveis pode ser um momento propicio para as ações voltadas para a questão do passivo ambiental dos grandes barramentos e a insensata gestão das águas do São Francisco.

Imagem do topo – No leito seco do rio, em Entremontes, sem água, as embarcações também vão morrendo | acervo Canoa de Tolda.

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