por Carlos Eduardo Ribeiro Jr
A temerária e não democrática gestão do São Francisco e os territórios de sua bacia, atendendo a setores hegemônicos sem qualquer preocupação socioambiental, é um dos principais componentes que levaram sua degradação ao limite do irreversível.
Afinal, quem determina como o rio é, como será?
Tal pergunta é cotidiana, há anos, ao serem miradas as poucas águas que [ainda] correm no baixo São Francisco: as outrora bem-vindas cheias são apenas lembranças nas memórias dos mais velhos – já há tempos taxadas como uma praga, “flagelo” que os barramentos varreriam para sempre dos infelizes ribeirinhos.
E o que se vê, não sem causar rancor, tristeza, sensação de domínio bruto das vidas modificadas (em geral para pior, desde as barragens), é a regra quase que diária, há muitos anos [1]: pouca água (o padrão anual), muita água que vem de modo súbito (algumas vezes), o rio subindo e descendo todos os dias, como uma maré imprevisível; finais de semana quase sem água.
Enfim, um rio que, visivelmente, há cerca de quarenta anos, não segue mais os ciclos naturais milenares e aos quais as populações da região, desde que aqui chegou gente [2], ajustou suas vidas e agora vive a modificação silenciosa da paisagem que, deformada, corta os vínculos milenares das pessoas com as águas do São Francisco.
Que alguém comanda esse rio está bem claro, mas quem tem esse poder? E por que, de modo impositivo, rude, muitas vezes brutal, afetando tantas vidas, comprometendo o futuro do rio, suas populações, sem a efetiva participação de milhares de pessoas direta e indiretamente afetadas – de forma definitiva?
O rio não é mais liberto, a correr solto pela calha, da nascente desde Minas até a foz: está barrado em vários lugares. Ainda lá em cima, no alto São Francisco, está a represa de Três Marias seguida, no sub-médio São Francisco, pela gigantesca represa de Sobradinho, na divisa de Pernambuco e Bahia. Ainda no sub-médio, a barragem de Itaparica, também entre a Bahia e Pernambuco e, no limite com o Baixo São Francisco, o complexo das quatro represas de Paulo Afonso e a de Moxotó (Apolônio Sales), entre Alagoas e Bahia. A última é Xingó, nos estados de Sergipe e Alagoas, no derradeiro trecho levando até o mar.
De todas as represas a que mais influencia o regime de vazões do rio (o volume de água que corre, medido em metros cúbicos por segundo – m³/s) na região fisiográfica do Baixo São Francisco é a represa de Sobradinho, seguida de Itaparica. Mas a barragem de Xingó também faz parte dessa história, pois segue um modelo de operações à parte, igualmente com muitos impactos.
Inicialmente, voltemos a atenção para Sobradinho: nos limites dos trechos Médio e Sub Médio retendo e controlando a água que vem das nascentes do São Francisco e da maior parte dos afluentes perenes, ao contrário dos que estão mais próximos do Baixo São Francisco. Lembremos que as chuvas no alto da bacia começam perto de outubro/novembro e vão até março/abril no chamado período úmido. Nos tempos anteriores aos barramentos, era o período das cheias. Desde 1979/80 (enchimento do reservatório), a água fica retida em Sobradinho (totalmente voltada para a geração de energia elétrica) e quando muito, em algum momento deste período, se a represa atinge seu limite de vazão máxima de restrição (cerca de 8.000 m³/s), as comportas são abertas e a água é liberada pelo vertedouro, uma enchente curta, se comparada às cheias naturais, e algumas vezes imprevista, como veremos adiante. No restante do tempo, bastando observar as informações disponibilizadas pela CHESF – Companhia Hidro Elétrica do São Francisco, até o início de 2013, tínhamos vazões médias da ordem de 1.800/1.900/2.000 m³/s, sobretudo a partir do funcionamento da UHE Xingó em 1994/5 (que depende diretamente da água vinda de Sobradinho) com seis máquinas (cada máquina geradora necessita de algo em torno de 320 m³/s em regime de operação normal) instaladas.
Portanto, o rio que corre a partir de Sobradinho, seja em períodos de fartura de águas e naqueles de estiagem é unicamente fruto da vazão de água que passa nas UHEs (Usinas Hidroelétricas) para geração de energia elétrica. Se é necessária maior produção, “para atender à demanda” como deixa claro o setor elétrico, mais máquinas são acionadas, permitindo passagem de mais água. Se não há necessidade, menos máquinas são operadas e, com menos água a correr, o rio seca literalmente.
A barragem de Itaparica também funciona de forma similar, mas armazena bem menos água do que Sobradinho e seu poder de regular as cheias é muito menor. Se temos situação de trovoadas, chuvas localizadas no sertão pernambucano, a água que chega (às vezes muito rapidamente) em Itaparica pode elevar a cota do nível (de água) da barragem ligeiro. Daí uma vez ou outra termos enchentes repentinas na época das chuvas (que ocorre, opostamente ao período úmido da bacia, no chamado inverno da região, entre maio e meados de setembro) no sertão, o que já aconteceu em 2003, 2004 e 2005.
Xingó é um caso particular, pois tem um reservatório pequeno e toda vazão afluente (a água que chega de cima) tem que sair: ela foi concebida e opera dentro do conceito de fio d’água com variação muito pequena no nível de sua cota. Tal condição significa que Xingó opera praticamente com a mesma vazão que Sobradinho/Itaparica. Mas a operação da hidrelétrica de Xingó tem uma influência importante no baixo São Francisco pois seu padrão de funcionamento é refletido diariamente no comportamento do rio: encher nos dias de semana, secar no final de semana, subir durante o dia, secar pela noite, sem que estas variações horárias e diárias (posto que atualmente as determinantes permitem o que se chama de vazão média mínima e não a vazão mínima de fato, como praticada até pouco tempo atrás) sejam estabelecidas de forma precisa e devidamente comunicadas. A operação de Xingó ainda provoca intensiva erosão (que por sua vez acelera o assoreamento, e a consolidação dos inúmeros bancos de areia, as croas) e problemas de acesso à água e mobilidade para a população ribeirinha.
E os ecossistemas, o meio ambiente, o patrimônio natural? Este segmento de usuários precípuos, primais, sem voz, jamais reconhecidos (e, no entanto, detentores por direito de sua demanda por condições muito precisas de quantidade e qualidade de água) nunca foram atendidos: em cerca de 40 anos de operação do sistema (contando com o início de Sobradinho) podemos dizer sem problemas que nunca uma única gota de água foi liberada para o que se convencionou chamar de serviço ambiental.
Finalmente chegamos ao cerne da questão: quem, afinal, comanda a “torneira da água”, o sobe e desce, o vai e vem, na operação das barragens?
Há três personagens principais nesta história do grande desastre que é o São Francisco, onde o final feliz é um só: gerar energia elétrica, a qualquer custo, sobrando a pior parte da conta para as pacatas e desassistidas populações do Baixo São Francisco. Quem são eles?
Sigamos pela hierarquia de poder de mando institucional, a partir das atribuições garantidas por lei, lembrando que são todos órgãos do Governo Federal (o rio São Francisco, por ter seu curso em mais de uma unidade da nação, é rio de domínio da União – veja aqui a cartografia de dominialidade dos rios brasileiros)
Temos o ONS – Operador Nacional do Sistema Elétrico (uma bizarra forma jurídica, posto que o órgão é uma ONG – que se desconhece ter sido em algum momento questionada – veja o decreto de criação aqui) – que determina impositivamente em todo o território nacional os usos das águas em reservatórios das UHEs para atender ao Sistema Interligado Nacional – SIN. De forma direta, o ONS é quem tem a mão sobre as inúmeras torneiras dos reservatórios em todo o país, estabelecendo diariamente, de acordo com a já apresentada “demanda”, as vazões do recurso hídrico (o itálico é nosso) de modo a realizar a geração de energia pretendida. No caso do Baixo São Francisco, desconhecemos qualquer vinda de membro do órgão, para avaliação (o órgão foi criado em 2004 pela ANEEL – Agência Nacional de Energia Elétrica) dos efeitos da geração de energia: o passivo socioambiental que, evidentemente, é anterior à sua existência.
Em seguida, temos a CHESF – Companhia Hidro Elétrica do São Francisco, já conhecida, que opera diretamente as barragens. É ela que comanda, diariamente, as manobras das comportas de modo a atender as metas do ONS. As operações da CHESF, em todas as barragens (e isso é regra para todo o território nacional) seguem regras, diretrizes e restrições como vazões de restrição (vazões mínimas e máximas), por exemplo.
E por fim a ANA – Agência Nacional de Águas, e que em princípio deveria cuidar do uso correto das águas para os vários fins que conhecemos: prioritariamente, para abastecimento humano, dessedentação animal, navegação, pesca, irrigação, lazer e geração de energia, quando existirem hidrelétricas na bacia. São os chamados usos múltiplos, gerenciados pela Agência, que deveriam ser discutidos de forma efetivamente participativa e democrática, o que não ocorre. O setor elétrico estabelece, de forma hegemônica, impositiva e com efeitos devastadores como os canais que um dia foram rios devem ser.
E há ainda um quarto componente deste grupo, o IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, que deveria cuidar para que os três primeiros não prejudiquem o ambiente enquanto fazem uso das águas. É o IBAMA que, através da DILIC – Diretoria de Licenciamento, em Brasília, edita as LOs – Licenças de Operação dos barramentos (a LO é a derradeira etapa para o funcionamento dos empreendimentos – veja a lista de processos de Sobradinho e Xingó), licença que incorpora as várias – e insuficientes – restrições, regras, e diretrizes ambientais voltadas para a preservação do rio São Francisco. O quadro de definhamento do rio, da detonação da bacia hidrográfica, reflete a gestão desastrosa da mesma, de seu território (seus usos e ocupações que não contemplam um futuro adequado) da bacia e a forma de como o IBAMA de fato se debruça sobre o problema e (não) exerce sua função.
Com relação às populações afetadas pelas operações de barramentos, em particular no trecho baixo do rio São Francisco, podemos dizer que em momento algum, desde a implantação de Sobradinho (a barragem foi idealizada e construída durante o período dos governos militares) até o presente, fez parte de momentos decisórios. Todos os barramentos, suas operações, foram impositivos, sob a alegação de que contribuiriam para o crescimento do país e da chegada da luz às suas casas (no caso do Baixo São Francisco, até muito recentemente, povoados e sítios com moradores ainda não contavam com energia elétrica). Pelo contrário, o Baixo São Francisco, hoje comparável a um extenso brejo (redução da vazão regularizada em 2013), com águas paradas, salinizadas na sua foz, é sobrecarregado por um considerável passivo socioambiental, exportando riqueza e o que é considerado como padrão de vida para populações urbanas distantes da região. Objetivamente, e o caso do Baixo não é exceção, é a regra: as populações não participam do processo da gestão das águas do rio.
Porém, o Governo Federal e os já citados operadores apreciam dizer que tal situação não procede. Alegam que, através do CBHSF – Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco a sociedade civil está presente no comando dos destinos do rio (veja a composição do CBHSF aqui). Alegação que é reforçada pelo próprio comitê, que se promove como o ambiente mais adequado e legítimo para a solução dos conflitos (que são muitos, há anos) pelo uso da água.
O CBHSF, criado pelo Governo Federal (veja o decreto de criação aqui), formado por vários setores da sociedade em geral, tem como membros uma parte boa do próprio Governo. No entanto, o órgão, não tem poder de decisões, sendo uma entidade apenas consultiva, dando caráter de legitimidade (pois faz parte do SINGREH – Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos) sobretudo em decisões drásticas como, por exemplo, a redução das vazões regularizadas em 2013, ainda hoje sendo praticadas. Ainda: o CBHSF não tem personalidade jurídica funcionando acoplado à uma Agência de Bacia (uma Organização Não Governamental [3], esta sim, juridicamente existente, escolhida através de um processo seletivo e que tem a função de executar as ações fruto das deliberações do Comitê e seu Plano Plurianual, todos apoiados no Plano de Bacia Hidrográfica, com os recursos vindos da cobrança pelo uso da água), num modelo engendrado pelo Governo Federal, formando uma estrutura de gestão/execução de participação popular, harmonia e eficiência questionáveis. E, por não ”existir” juridicamente, apesar de funcionar com recursos públicos, o comitê fica fora do alcance de instrumentos essenciais para o exercício da cidadania como, por exemplo, demandas apoiadas pela Lei de Acesso à Informação via o essencial E-SIC (Serviço de Informações ao Cidadão) da CGU – Controladoria Geral da União.
Se em relação às decisões da gestão do território e das águas da bacia as gentes que vivem ao longo das margens do São Francisco e afluentes estão rigorosamente à margem do processo, haveria, ao menos, algum tipo de relação formal próxima, física ou ainda através de um sistema específico dedicado, entre essas pessoas e os listados senhores das torneiras? Não, não há: nenhum dos órgãos tem um escritório e pessoal no Baixo São Francisco especificamente capacitado e voltado ao trato para com as populações impactadas margem. Um sistema de comunicações tipo 0800 para reclamações, comunicação de situações de emergência e, quem sabe um dia, elogios é inexistente. Todos os órgãos legalmente destinados à gestão do São Francisco, no caso específico de seu trecho Baixo, operam fora dos limites físicos da Bacia: estão na capital federal, capitais dos estados, distantes de uma realidade muito diferente dos ambientes virtuais e salas climatizadas onde decisões que afetam milhares de pessoas e o patrimônio natural são sacramentadas.
Notas –
Há um limite desta quantidade de água mínima, estabelecido pelo Plano de Bacia elaborado pelo CBHSF – Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, que faz parte da LO – Licença de Operação emitida pelo IBAMA para cada barragem (ou empreendimento, como formalmente são chamados os barramentos). Porém, como vimos a partir de 2013, licenciamentos e restrições não são absolutamente restritivos ao setor elétrico e outros que utilizam o patrimônio natural. a exemplo de como o meio ambiente é tratado ainda hoje em nosso país.
1- Em 2019/2020 o São Francisco completa cerca de quarenta anos da entrada em operação da barragem de Sobradinho. São décadas de impactos profundos, cumulativos e crescentes que determinaram mudanças definitivas nas vidas das pessoas e dos ecossistemas aquáticos e ripários dos Sub Médio e Baixo São Francisco.
2- As ocupações humanas no Baixo São Francisco são datadas de cerca de 10.000 anos antes do presente. Veja mais em Antes do Europeu.
3- Atualmente, a Agência Peixe Vivo, de Minas Gerais, exerce a função de Agência de Bacia para o CBHSF – Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco.
Imagem do topo – A chata de Zé Migué no través do Mocambo | acervo Canoa de Tolda.
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