Zanoni Neves

De como a tecnologia naval do Baixo São Francisco, somada ao espírito de aventura e visão de canoeiros sergipanos e alagoanos mudou a navegação no rio de cima

Muita gente da margem não sabe da importância da colônia sergipana na navegação das bandas do rio de cima. Foi uma leva de povo que subiu para cima das cachoeiras lá pelos anos 40 do século passado. pois. Esses barqueiros perceberam novas oportunidades e puxaram sobretudo para Juazeiro da Bahia. Não imaginavam que trariam, junto com suas canoas e experiências, mudanças importantes na forma de navegar, nas relações entre os próprios barqueiros, e mesmo no comércio do Médio São Francisco. Para nos contar melhor esta história tão interessante, e ainda muito desconhecida pelo povo do Baixo, conversamos com o Zanoni Neves, de Pirapora, Minas Gerais, lá perto das cabeceiras. Zanoni é hoje um dos grandes estudiosos da navegação tradicional do Médio São Francisco, dando uma importante contribuição para a valorização da história das pessoas deste rio. Vamos lá.

As barcas de figura, dos Médio e Alto São Francisco, não resistiriam às canoas de tolda. Imagem | Zanoni Neves | acervo pessoal

«Pertenci (e posso dizer que ainda pertenço) à grande família dos fluviários do Médio São Francisco. Meu avô, Antônio Joaquim d’Almeida Roque, foi maquinista dos vapores pertencentes ao Coronel Quintino Vargas, de Paracatu (MG). Posteriormente, o velho Roque – como era conhecido – mudou-se para Pirapora (MG) onde foi contratado pela NAVEGAÇÃO MINEIRA DO RIO SÃO FRANCISCO, empresa pertencente ao Estado de Minas Gerais. Nascido em Pilão Arcado, na Bahia, meu pai – Joaquim Borges das Neves – foi taifeiro, comissário e capitão fluvial nesta mesma empresa e na COMPANHIA DE NAVEGAÇÃO DO SÃO FRANCISCO. No Bairro Santo Antônio, onde sempre morei em Pirapora, havia um grande número de fluviários com suas famílias. Nesse meio, vim ao mundo e cresci em contato com crianças e jovens da minha idade e de mesma extração social. Dentre os brinquedos que utilizávamos, me lembro dos vaporzinhos de buriti, das canoinhas de madeira etc. Essa  convivência familiar e social determinou meu interesse pela navegação tradicional do Médio
São Francisco».

«Não tenho informações precisas do ano em que chegaram os primeiros sergipanos no curso médio do rio. Segundo Seu Ermi Ferrari Magalhães, o pioneiro, ou seja, quem introduziu de fato as canoas de tolda no Médio São Francisco, foi o Sr. Manoel Vieira da Rocha, que chegou a Juazeiro na primeira metade dos anos 1940 com a canoa de nome “Sergipana”, que foi construída em Santa Maria da Vitória. Entre os barqueiros do Rio de Cima, houve inicialmente uma descrença geral de que tal empreendimento daria certo, pois temia-se que as corredeiras e pedras isoladas em Sobradinho – ainda não havia a barragem e o lago – e em
outros trechos provocassem colisões, naufrágios etc. As embarcações sergipanas eram mais ágeis e velozes do que as barcas de figura. Daí o temor dos barqueiros do Médio São Francisco. Mas, para surpresa de todos, as canoas de tolda (que passaram a ser conhecidas
como “canoas sergipanas”) adaptaram-se muito bem».

A efervescência do porto de Propriá, em Sergipe, nos anos 40, não foi obstáculo para o espírito aventureiro dos armadores da região. Imagem | acervo Canoa de Toda | via Casa do Penedo

«Em seguida, outros canoeiros de Sergipe deixaram o Rio de Baixo, estabelecendo-se na região do Rio de Cima, inclusive nos afluentes. O Sr. Fernando Santana, por exemplo, fixou residência em Santa Maria da Vitória, no rio Corrente. As informações que obtive, através de entrevistas em Juazeiro, indicam que os sergipanos chegaram em busca de oportunidades comerciais conforme o Sr. Ermi Ferrari Magalhães, que trabalhou com o Sr. Rocha. Foi em
Juazeiro o principal núcleo da colônia sergipana na região. A concorrência, a decadência da navegação no Rio de Baixo, seu pequeno trecho navegável devem ter contribuído para a emigração dos canoeiros provenientes do Estado de Sergipe».

«A tradição sergipana de navegação provocou uma verdadeira revolução no Médio São Francisco. A tecnologia de navegação que utilizava os “dois traquetes e a bolina” era totalmente desconhecida. As antigas barcas de figura usavam velas latinas quando havia vento favorável. Se não houvesse vento para enfuná-las, os remeiros utilizavam os “varejões” grandes ou “varas ferradas” nas viagens de rio acima e as “vogas” (grandes remos) rio abaixo.

Com a introdução dos dois nas viagens traquetes, tornou-se possível navegar “com vento atravessado” conforme diziam os barqueiros e remeiros. Vale lembrar um exemplo: uma canoa de tolda fazia uma viagem de Santa Maria ?? da Vitória a Juazeiro em dez dias, ao passo que a mesma viagem numa barca de figura durava vinte dias ou mais. A canoa de tolda também possibilitava economia para os barqueiros em suas despesas com salários do pessoal embarcado: mestre, remeiros, cozinheira».

«É importante ressaltar que essa nova tecnologia ocasionou a adaptação das barcas de figura, que passaram a utilizar duas velas, tornando-se embarcações híbridas. É fácil perceber as razões da mudança. As canoas de tolda empregavam apenas três tripulantes, já as antigas “emas” (apelido das barcas de figura)utilizavam mão de obra em grande escala, variando a tripulação de acordo com as medidas da barca. A mudança de tecnologia implicava menor
despesa com a contratação de pessoal. O sergipano Fernando Santana dizia-nos que, depois de viajar uma única vez nas canoas de tolda, os remeiros evitavam contratos em barcas de figura. É fácil perceber o porquê dessa preferência. Trabalhava-se com remos e varas nas “emas”, o que significava grande esforço físico, jornadas extenuantes, ferimentos no peito provocados pelo instrumento de trabalho, etc.».

“E o povo chorava, quando as canoas passavam por aqui, na carreta, que nem um caixão, indo para o rio de cima…”

A canoa de Janjão, embarcando em Piranhas, AL. Imagem | Fernado Baé | Acervo Pessoal

Assim falava Da. Santinha [1], esposa de S. Jonas, irmão de S. Zé da Goiana, dupla famosa de pilotos de canoas de tolda, de Pão de Açúcar.

Muitas canoas foram embarcadas em carretas, em Pão de Açúcar e, via rodoviária, subiam para riba das cachoeiras, onde voltavam a navegar nas águas do São Francisco. Uma outra forma, era o transporte via ferroviária, a partir de Piranhas. Mas também não era fácil, como conta Mestre Aurélio de Janjão [2]: «a canoa de papai subiu daqui mesmo. Foi tirada da água para terra, e colocada numa carreta do trem, que puxou-la até lá para cima…foi um sufoco…»

Canoas grandes, para poderem passar na ponte do rio Moxotó, eram desmontadas em dois pedaços. As peças (a embonação do costado) eram desaparafusadas, perto de meia nau, assim como os colos e o fundo. A canoa ficava «dividida ao meio», cada metade numa carreta. Ao chegar ao rio de cima, era remontada pelos mestres, as costuras recebiam novo calafeto e a bicha voltava para água. Correr novas carreiras até Januária, Bom Jesus da Lapa,Barra, Barreiras, para onde desse certo, enquanto se tivesse força.

Notas –

[1] – Dona Santinha foi entrevistada na produção do documentário Na Veia do Rio, 2000.

[2] – Mestre Aurélio fez parte da produção do documentário De Barra a Barra, 2008.

«Dentre os sergipanos que migraram para o Rio de Cima, havia também pescadores. Como Sr. Manoel da Rocha Lima, um pescador de Januária de reconhecida competência naquela sub-região (Januária, rio Pandeiros etc.). Os pescadores nativos admiravam sua habilidade; dizia-se até que ele “tinha pauta” com a Mãe d’Água, com o Caboclo d’Água, etc. Estainformação serve para caracterizar a amplitude das imigrações de Sergipe para o Rio de Cima».

O porto de Barreiras, no alto rio Grande, também foi atingido pela “leva” de canoas sergipanas. Imagem | Acervo Canoa de Tolda

« Além do surgimento de embarcações híbridas, já mencionadas, a carpintaria naval passou por mudanças mais substanciais. Em Santa Maria da Vitória, por exemplo, o ESTALEIRO DO TAMARINDO DE CIMA passou a fabricar canoas de tolda, imitando as originais, que haviam sido transportadas do Rio de Baixo. Mestres carpinteiros do Baixo São Francisco chegaram a Santa Maria, cuja região era rica em madeiras apropriadas para construção naval. O Sr. Ermi
Ferrari Magalhães mencionou a verdadeira epopeia que foi o transporte de algumas canoas do Rio de Baixo para o Rio de Cima. A “ Iracema ” , por exemplo , foi transportada com grande dificuldade».

«Quantas foram as canoas que navegaram no médio São Francisco? Não temos informações sobre a quantidade de canoas sergipanas do Rio de Cima. Não sei se será possível levantar esses números. Durante algum tempo, a Capitania dos Portos em Juazeiro manteve uma relação das barcas que faziam o comércio ambulante e o transporte a frete no Médio São Francisco. Mas, como no Brasil não havia uma tradição de conservação de arquivos, possivelmente esses dados se perderam».

No médio São Francisco ocorreram gerações de canoas de tolda miscigenadas com a tecnologia naval local. Imagem | Marcel Gautherot | Instituto Moreira Salles

«Em seguida, com a introdução das “barcas motorizadas” com motores “Bolinder’s ”, desapareceram definitivamente as barcas de figura. A primeira barca a motor foi a “Aragipe”, construída pelo sergipano Manoel Vieira da Rocha. O melhor trecho do Médio São Francisco para navegação a vela é o trecho entre Barra e Juazeiro. Mas, eventualmente, podia faltar vento até mesmo nesse percurso. Acima de Barra, os ventos são mais inconstantes, menos regulares. A introdução das “barcas motorizadas” tornou possível a navegação em todo o curso médio do rio, de Pirapora a Juazeiro, incluindo os afluentes Corrente, Grande e, até mesmo, outros com condições de navegabilidade mais limitadas como o Paracatu, o Urucuia. As barcas a motor chegavam também ao Rio Preto, afluente do Rio Grande. Assim, acredito, as canoas de tolda caíram em desuso. As “barcas motorizadas” ofereciam uma tecnologia de navegação mais avançada, alcançando portos comerciais que não eram visitados pelas “canoas sergipanas”.

« Certamente, as “canoas sergipanas” estão na memória dos ribeirinhos do Médio São Francisco. Eram mais ágeis, eram admiradas: “eram mais bonitas” – dizia-se. Na cultura regional ressaltavam-se essas e outras qualidades das canoas de tolda. Velhos remeiros nos disseram que, enquanto sofriam para impulsionar as barcas de figura com seus remos e varas (como nas “pontas d’água”), as “sergipanas” passavam com velas enfunadas, sumindo no horizonte»

Texto originalmente publicado em A Margem – set/out-2009. Revisão e atualização em fevereiro de 2019

O autor

Zanoni Neves, filho do vapozeiro Joaquim Moreno Neves, estudou Ciências Sociais na UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais, onde também foi professor coordenando o Curso de Especialização em Cultura Popular do Centro Universitário Newton Paiva. Publicou os livros A Barca Aurora (Mazza Editora, 1991); Navegantes da Integração – Os Remeiros do São Francisco (Editora UFMG, 1998, Coleção Humanitas); os Remeiros do São Francisco (Editora Saraiva, 2004, Coleção “Que história é essa?”) e, mais recentemente, Na Carreira do Rio São Francisco – Trabalho e Sociabilidade dos Vapozeiros (Editora Itatiaia, 2006). Também trabalhou no Banco do Brasil, no FUNDEC – Fundo de Desenvolvimento Comunitário. Hoje, aposentado, se dedica a pesquisas na área da navegação do médio São Francisco.

Imagem do topo – Composição de imagens (barca de figura | acervo Zanoni Neves; canoa de tolda | acervo Canoa de Tolda ). Produção Canoa de Tolda

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