Etevaldo Amorim

A subida de mestre Mestre Minervino Amorim para o médio São Francisco para a construção da Sergipana, primeira canoa de tolda do rio de cima, é o marco do avanço da tecnologia naval do Baixo São Francisco e o início do declínio das conhecidas barcas de figura.

O processo evolutivo da navegação no Sub-Médio São Francisco se deu lentamente e atingiu o seu ápice sob a influência do curso baixo do rio. Desde a primitiva canoa indígena, feita de “um pau só”, surgiu, por volta de 1823, um tipo peculiar de embarcação a que se chamava “Ema” ou “Tapa-de-gato”. Eram grandes barcas, impulsionadas por varas que mediam de seis a sete metros de comprimento, operadas por cerca de quinze remeiros, que as empurravam com os ombros.

Era à custa desse enorme sacrifício que se realizava o transporte de cargas entre Juazeiro (BA) e Januária (MG), até o início da década de 1940. Nessas

Manoel Vieira da Rocha (Nozinho Rocha). Imagem | via acervo do autor

demoradas viagens, chegavam a até a criar animais dentro das próprias barcas, para deles se alimentarem enquanto estivessem a bordo.

O modo de navegar, e mesmo as técnicas de construção e de manejo das embarcações, conferiam aos navegadores do Baixo São Francisco uma notável superioridade em relação aos seus colegas do “rio de cima”. Essa vantagem tecnológica se deveu, provavelmente, à proximidade do oceano, notadamente pelo acesso dos mais variados tipos de embarcação ao porto de Penedo.

As inovações e o aprimoramento não tardariam a chegar ao curso Médio do rio. Entretanto, talvez demorasse muito mais, não fosse a visão empreendedora de Manoel Vieira Rocha[1] , um industrial estabelecido em Propriá no ramo de beneficiamento de arroz e algodão. Pretendendo mudar-se para Juazeiro, levou consigo a ideia de introduzir a nossa tão famosa “canoa de tolda”.

Pondo em prática o seu intento, “Nozinho Rocha”, como era conhecido, contratou, por 9 Contos de Réis, o renomado “mestre” Minervino [2] , que lhe deveria construir uma canoa com capacidade para 300 sacos (sacos de 60 kg = 1.800 kg). Posteriormente, essa capacidade foi aumentada para 400 sacos (2.400 kg) e a quantia para 11 Contos de Réis.

No dia 25 de maio de 1944, uma quarta-feira, às cinco horas da manhã, “Mestre Minervino” e seus filhos José, Pedro e Álisson, partiram de Propriá com destino a Juazeiro, no Estado da Bahia.

A impensável jornada de Mestre Minervino e seus filhos, de Propriá a Santa Maria da Vitória: 1390 km por água, trem, de pés… para mudar a história das navegações no submédio. Cartografia | Canoa de Tolda

Daí em diante, a abordo do São Francisco, um vapor propulsado por roda traseira, já em companhia de um irmão do contratante, Agripino Rocha, viajaram seis dias e quatro noites, percorrendo 140 léguas (840 km) até chegaram a um lugar denominado Sítio do Mato, acima do qual se encontra e embocadura do rio Corrente [3] .

Minervino Tavares Amorim. Imagem | Via acervo autor

Seguiram a pé por cerca de 13 léguas, até conseguirem montarias e cumprirem as 7 léguas que faltavam para chegar a Santa Maria da Vitória, o que veio a acontecer às 11 horas de uma bela manhã de sábado.

Nozinho Rocha não falou a verdade. Havia informado que a distância de Juazeiro a Santa Maria da Vitória não ia além de 30 léguas, talvez receoso de que, sabendo a distância certa – 140 léguas, “Mestre Minervino” jamais aceitasse pôr os pés naquele fim-de-mundo.

O ardil do contratante deu resultado. Já estando em plena viagem, não havia outro jeito senão continuar a jornada em busca da madeira abundante e de boa qualidade, razão maior de tamanho sacrifício.

Ao chegarem, procuraram alugar uma casa e, à noite, ficaram a pensar prá que lado ficaria Propriá… Inicialmente tomados por “retirantes”, já no domingo espalhou-se a notícia de que, em Santa Maria, haviam chegado uns “engenheiros”…

Já em junho, puseram-se a trabalhar na retirada da madeira. Depois, a espera para secar, a feitura das tábuas, a montagem do estaleiro e, enfim, a obra.

Sete meses haviam passado. Finalmente, no dia 18 de dezembro de 1944, estava pronta a canoa de “seu Nozinho Rocha”, que se constituiria num marco da navegação no Médio São Francisco. Associada a ela, o talento de um legítimo limoeirense, que ainda retornaria ao “rio de cima” para construir a lancha “Nova Olinda”.

Mestre Minervino e sua obra, a canoa “Sergipana”, no estaleiro em Santa Maria da Vitória, BA. Imagem | Via acervo do autor.

Mestre Minervino e seus discípulos conduziam a Sergipana com exímia maestria pelo rio Corrente. Os ventos fracos e mal direcionados muitas vezes dificultavam a viagem nos seus 80 metros de largura, em média.

Só quando atingiram as águas do São Francisco, puseram-se a bordejar [4] , serpenteando rio abaixo, aproveitando o vento forte, outrora um obstáculo para os bravos canoeiros.

A lancha Nova Olinda, motorizada, acompanhando a evolução da navegação na região, seria construída na segunda temporada de Mestre Minervino na Bahia. Imagem via acervo do autor.

Sob enorme expectativa, chegaram a Juazeiro no dia 3 de janeiro de 1945 [5] . No porto, as apostas se sucediam. Muitos não acreditavam que se pudesse navegar assim, sem que se recorresse aos antigos remos, recurso extenuante e já em desuso no bairro São Francisco. Tudo era novidade. Quando ao “virar o bordo”, o piloto abaixou a tábua de bolina, um baiano gritou assustado: – Ô moço, caiu um trem aqui dentro d´água!!!!!

Veja ainda:

Dos remos aos traquetes: as sergipanas subiram

Notas –

Pedro Amorim. Imagem | Adeval Marques

Este artigo é uma adaptação do capítulo Fazendo Escola, do livro Terra do Sol – Espelho da Lua, de minha autoria, publicado em 2004, feito a partir do relato de Pedro Amorim durante uma de suas visitas a minha casa em Pão de Açúcar.

Pedro Amorim, radicado em Propriá, era um dos ajudantes do pai, Minervino Tavares Amorim (meu tio-avô paterno), junto com seus irmãos José e Álisson (conhecido por Agiso) nessa empreitada para a construção da canoa Sergipana.

Os filhos do Mestre se dedicaram à mesma atividade, inclusive Agenor, que não o acompanhou na viagem para poder ficar tomando conta da mãe e das irmãs que ficaram em Propriá. A exceção foi Álisson, que se tornou funcionário do antigo SESP.

1- Manoel Vieira Rocha nasceu em Amparo do São Francisco. Casado com Alice Santana, Cícero Simões, seu genro. Sérgio Simões seu neto.

2- Minervino Tavares Amorim, natural de Limoeiro (Município de Pão de Açúcar-AL). Nasceu no dia 5 de abril de 1894, filho de Pedro José de Amorim e de Maria das Dores Lima de Amorim. Casado com Maria Verdulina de Amorim (Dona Vida).

3- Um dos principais afluentes do São Francisco, tem uma extensão de aproximadamente 120 km, desde a confluência dos seus formadores (os rios Formoso e Correntina, ou Rio das Éguas), localizada 7 km a montante de Santa Maria da Vitória-BA.

4- Modo de navegar rio abaixo e contra o vento, calçando-se a verga até formar um ângulo de aproximadamente 45º com o sentido longitudinal da embarcação. Em zigue-zague, chega-se a quase tocar, ora numa margem oura noutra, baixando-se alternadamente a tábua de bolina.

5- Informação de Pedro Amorim, filho do Mestre Minervino.

O autor

Etevaldo Alves Amorim (Campinas-SP, 29/07/1957). Engenheiro Agrônomo, tem várias obras publicadas: Pão de Açúcar – Cem Anos de Poesia – Coletânea, Maceió: ECOS Gráfica Editora, 1999 (org.); Terra do Sol – Espelho da Lua, Maceió: ECOS, 2004; Freitas Machado: Vida e Obra, Maceió: EDUFAL, 2011. Publicação em periódico: Braúlio x Brayner: A Pena e a Espada, in Revista do Arquivo Público de Alagoas, Maceió: Arquivo Público de Alagoas, ano 2, n. 2, 2012, p. 127-152. Mantenedor do Blog do Etevaldo – História e Literatura: www.blogdoetevaldo.blogspot.com.

Imagem do topo – Como resposta às canoas de tolda, a construção naval do médio São Francisco produziu uma série de embarcações híbridas, com o emprego parcial ou total da tecnologia naval vinda do Baixo São Francisco, como esta canoa, na região de Barreiras, Bahia, década de 40. Imagem | acervo Canoa de Tolda.