PATRIMÔNIO NAVAL

As Grandes Barragens e o Fim das Navegações

Com a regularização do rio a partir da construção de Sobradinho (enchimento do reservatório em 1979/1980), ocorre a quebra da economia vazanteira – dependente do ciclo natural de cheias do rio – em todo o Baixo São Francisco. A produção de arroz, sobretudo, cai vertiginosamente, uma vez que as extensas áreas das lagoas marginais entre Pão de Açúcar (AL) e Poço Redondo (SE), no sertão do Baixo e a foz do São Francisco, agora definitivamente secadas, não mais cumpririam seu papel, tanto para a agricultura como zonas de produção de biodiversidade, sendo que a produção de peixes e crustáceos significava, além do valor econômico, a subsistência das famílias ribeirinhas.

Com o fim dos ciclos naturais de cheias, que mantinham a saúde dos canais fluviais a partir da Boca do Saco (a jusante dos povoados Jacaré, em Poço Redondo (SE) e Entremontes, em Piranhas (AL), o rio regularizado entrou em processos múltiplos de erosão violenta e assoreamento, inviabilizando, gradativamente, a navegação de embarcações de maior porte nos cerca de 250 quilômetros entre a cidade de Piranhas, no alto sertão alagoano e a foz. Esta, obstruída, impediria o acesso de embarcações de maior porte, como pequenos navios de cabotagem, e mesmo petroleiros e navios de apoio à plataformas petrolíferas. E, de forma

Penedo, nos anos 1940 e 1970. A presença das embarcações tradicionais, ativas nas carreiras da praia ao sertão, eram parte integrante da paisagem. Imagens | Casa do Penedo e Codevasf.

complementar, a  zona costeira em direção ao sul, do delta do São Francisco à capital Aracaju, foi e ainda é, vítima de acelerado processo de recuo da linha costeira a partir das mudanças definitivas na dinâmica do rio com os grandes barramentos.

Cidades como Propriá, no agreste sergipano, com fábricas beneficiadoras de arroz, algodão, juta e grãos, e Penedo e Neópolis, na zona da mata alagoana e sergipana, respectivamente, e também com importante parque de indústria beneficiadora das produções locais, perderam, com este cenário, sua importância como polos exportadores de produtos da região e, no caso particular de Penedo, a condição de cidade de ligação entre o Baixo São Francisco e o restante do país: os navios de cabotagem e de carreira para o sertão (Piranhas) deixariam de entrar na barra ou de demandar cidades a montante.

Devemos lembrar que a Marinha do Brasil, a partir de sua Agência Fluvial da Capitania dos Portos, em Penedo, mantinha serviço de fiscalização, médico e odontológico com seus NaPaFlus – Navios de Patrulha Fluvial em todo o Baixo, da foz a Piranhas.

No final do século 20, anos 1990, a navegação comercial no Baixo São Francisco ficou restrita às travessias transversais de balsas entre Pão de Açúcar (AL), e o povoado Niterói, na margem sergipana do município do Porto da Folha; entre os povoados da Barra do Ipanema, município de Belo Monte (AL) e a Ilha do Ouro, também no Porto da Folha; entre o povoado dos Escuriais (SE), e a localidade do Bode, no município de Traipu (AL); às balsas entre Penedo (AL) e a Passagem, em Neópolis (SE); e finalmente a travessia entre Piaçabuçu (AL) e Brejo Grande (SE), na zona costeira, a chamada praia .

A lancha Oriente, antiga canoa de tolda, foi a derradeira na carreira do sertão. Encerrou a linha no início dos anos 2000. Imagem | Canoa de Tolda

Permaneciam ainda as lanchas (em geral antigas canoas de tolda ou chatas motorizadas) de travessia de passageiros em Pão de Açúcar e o povoado Niterói; entre Gararu (SE), e Traipu (AL); entre Propriá (SE), e o Porto Real do Colégio (AL); entre Penedo e Neópolis e entre Brejo Grande e Piaçabuçu.
As linhas de percursos longitudinais (de rotas a montante e/ou jusante entre origens e destinos) se resumiam a deslocamentos entre Entremontes e Pão de Açúcar, nos dias de feira atuais (segundas-feiras), com a lancha Santa Ana, de Seu Erasmo (linha extinta); linhas entre os Escuriais e Propriá (extintas); linhas entre o povoado Munguengue e Traipu (hoje apenas atendendo a estudantes do povoado que vão a Traipu); linha entre o Porto Real do Colégio e o Penedo de Zé de Carlito (extinta em meados de 2004).

Ainda tiveram uma sobrevida, correndo a carreira entre Brejo Grande, Piaçabuçu, Neópolis, Penedo, Propriá e Piranhas, as lanchas de passageiros Tupã, Tupy e Tupigy que, em meados dos anos 1980, foram sendo gradativamente desativadas. Restaria a derradeira linha de longo curso, praticada pela lancha Oriente, de Tonho da Lancha, de Traipu, entre Propriá e Pão de Açúcar, que foi encerrada em 2003, já no século 21.

NAVEGAÇÕES NO BAIXO SÃO FRANCISCO: DOS PRIMÓRDIOS AO PRESENTE

A Navegação Tradicional e Patrimônio Naval Remanescentes no Século 21

A navegação encontrada no Baixo são Francisco de hoje é o remanescente pulverizado, precário e decadente da outrora pujante atividade encontrada do início até pouco mais de meados do século 20, que mantinha esta região particularmente ligada – física, social e economicamente – a tantos outros lugares, no Brasil e além-mar.

Por razões óbvias de não serventia dos objetos, as embarcações tradicionais – sem o rio com condições para navegar, sem as produções locais (e de barra fora) para serem transportadas, sem as matérias primas (as madeiras das matas antes densas) para as construções –  desapareceram e todos os ofícios a ela relacionados seguiram tragados pela absoluta ausência de perspectiva futura. As evoluções ou adaptações aos novos tempos verificadas, mostram a perda do refinamento técnico e estético de seu apogeu. No presente (segunda dezena do século 21) são pouquíssimos e de idade avançada os mestres capazes de realizar a construção de um casco rombeado (02).

O patrimônio naval, a cultura vinculada às navegações e todas as atividades para que estas ocorram, como a construção naval, lavra de madeira, forja e fundição de ferragens, velarias, cordoarias, tecelagens, confecção de massas e calafetos, podem ser consideradas como extintas.

A Luzitânia é no presente a derradeira embarcação tradicional a vela navegando no Baixo São Francisco. Imagem | Pedro Bocca – Acervo Canoa de Tolda

Os derradeiros mestres (em todas as áreas das atividades citadas), que deveriam seguir a tradição de transmissão de seus conhecimentos para seus filhos, aprendizes, num processo longo (um bom mestre não se formava em menos de dez anos de trabalho constante), desapareceram sem que o legado, tecnologias seculares, pudessem ser preservados. Os filhos de mestres da segunda metade do século vinte, sobretudo a partir dos anos 70, não viam possibilidade de sobrevivência mantendo o ofício de seus pais.

Ainda: todas as construções navais no Baixo São Francisco seguiam rigorosamente projetos imaginários guardados de memória pelos mestres, as chamadas regras. Cada mestre tinha a sua, seu estilo, identificado pelas pessoas: “ali é trabalho de mestre Dedé, ô canoa aprumada, que saída d’água“.

As regras, que a grosso modo significavam as relações entre boca (a largura), comprimento da embarcação, seu pontal (a altura vertical do casco) de modo a ser obtido, de acordo com a carga especificada pelo armador, o casco mais eficiente, eram segredo de família. Passado unicamente de pai para filho, ou para um aprendiz, futuro mestre, de total confiança.

O fim dos mestres, a quebra da transmissão dos saberes, é também o fim do conhecimento. Ficam apenas algumas embarcações em número muito reduzido como testemunho físico de uma tecnologia de origem secular, planetária que não conta com ações efetivas de porte que possibilitem sua preservação.

Neste intuito, a Sociedade Canoa de Tolda realizou ou tem em curso as seguintes iniciativas: Projeto Canoa de Tolda – de restauro da canoa de tolda Luzitânia, finalizado; Projeto Luzitânia – de conservação, preservação e proteção da canoa de tolda Luzitânia,  projeto permanente, mantido pela entidade; Carreiras do Rio de Baixo – de educação patrimonial, realizado, podendo ser replicado a qualquer momento e o Embarcações do Baixo São Francisco – preservação do “DNA” das embarcações tradicionais do Baixo São Francisco, inciativa em curso.

Principais Embarcações Tradicionais do Baixo São Francisco

PROPULSÃO A REMO E/OU VELA

PROPULSÃO A MOTOR

VAPORES E NAVIOS

Clique nas imagens e acesse os ambientes e informações relativos às principais embarcações tradicionais que percorreram as carreiras do rio de baixo.

Notas:

01 – Considerando que a ocupação humana no Baixo São Francisco (ver Antes do Europeu) é da ordem de cerca de dez mil anos antes do presente, e que as tecnologias locais seguiam seu curso próprio de evolução, podemos concluir que a navegação fluvial entre a foz, inclusive sua zona costeira próxima, e a região conhecida como o atual Alto Sertão era praticada por embarcações nativas com características determinadas pelo uso e recursos disponíveis (madeiras para cascos, componentes estruturais, equipamentos como remos, varas) no território.

02 – Casco rombeado – casco com formas arredondadas, onde grande parte do taboado é lavrada a machado, enchó, para o perfeito acomodamento ao cavername da embarcação.

Bibliografia aconselhada:

A Aparição da Sumaca – Com a presença holandesa no nordeste do Brasil, importantes influências tecnológicas na navegação iriam ocorrer. Influências que determinariam linhagens de embarcações essenciais na cabotagem e em águas fluviais. Em artigo da Resvista Continente, o historiador pernambucano Evaldo Cabral apresenta a questão das sumacas holandesas na tecnologia naval brasileira. Evaldo Cabral. Revista Continente. 2001

A Saga do Barcaceiro – J. F. Maya Pedrosa, Maceió, 1994.

A Vitória da Barcaça – A partir da “brasilização” da sumaca holandesa, a embarcação evoluirá fornecendo o DNA para linhagens futuras, como as barcaças costeiras, de dois, três paus (mastros). Estas embarcações seriam fundamentais na cabotagem nordestina e adentravam o rio São Francisco, até o porto de Penedo. Em artigo da Revista Continente, o historiador pernambucano Evaldo Cabral apresenta a definição do padrão das barcaças. Evaldo Cabral. Revista Continente. 2001.

Canoas da Bahia. Cajaíba – Da Árvore à Canoa – Levantamento das técnicas e da sociedade vinculadas às canoas tradicionais da Bahia. João de Pina-Cabral. 2008

Carrancas do São Francisco – Paulo Pardal, Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1974.

Henrique Lage – Companhia Nacional de Navegação Costeira – HENRIQUE LAGE E A COMPANHIA NACIONAL DE NAVEGAÇÃO COSTEIRA: A HISTÓRIA DA EMPRESA E SUA INSERÇÃO SOCIAL (1891-1942). Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Social, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autor: Carlos Alberto Campello Ribeiro. UFRJ – 2007

Na Carreira do Rio São Francisco – Zanoni Neves, Belo Horizonte, 2006.

Navegantes da Integração – Os remeiros do rio São Francisco – Zanoni, Neves, Belo Horizonte, 1998.

Navegação Interior do Brasil – Obra de 1894 (reedição da publicação de 1869), do Engenheiro e General de Brigada Reformado Eduardo José de Moraes. Uma visão do aproveitamento das vias navegaveis do Brasil do século 19. Obra rara que se encontra na Biblioteca do Senado Federal, em Brasília

Pelas Carreiras – 017/2016 – Informativo da Canoa de Tolda

Viagens Imperiais – Obra rara que relata a viagem feita pela família imperial ao nordeste (e rio São Francisco), ao final do século XIX

We The Navigators – O neozelandês David Lewis apresenta suas experiências de navegação a partir de 1968 em convivência com os derradeiros navegadores tradicionais nativos do Pacífico. Diversas navegações a partir do período, cerca de 13000 milhas, tendo o aprendizado dos mestres navegadores. Lewis, David. AUSTRALIAN NATIONAL UNIVERSITY PRESS CANBERRA 1972

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