Da primeira e marcante visão da canoa Luzitânia em dezembro de 1997, são vinte essenciais anos de convivência com a embarcação símbolo do Patrimônio Naval do Baixo São Francisco.

O ano de 2005 foi decisivo para a aceleração das obras de restauro. Entre a montagem das instalações de trabalho, o estaleiro provisório, a retomada do rojão, e a canoa com sua célula básica quase finalizada em dezembro, o tempo foi todo tomado. As grandes dificuldades enfrentadas com as sucessivas inundações do estaleiro no Mato da Onça foram sendo cicatrizadas e a perspectiva das navegações futuras era, sim, algo bem perto, sentia-se o cheiro de canoa nos sonhos.

Carlos Eduardo Ribeiro Junior

Publicado em 08 de junho de 2019

2005

Em meados de 2005 a Luzitânia está com sua estrutura básica do casco praticamente completa. O trabalho correu ligeiro. Para manter a integridade do trabalho, uma vez casco e tolda finalizados, a canoa foi inteiramente impregnada com resina epóxi, para, enfim, deixa-la completamente encapsulada.

Imagem | Canoa de Tolda

Com a proximidade do estaleiro da Luzitânia do principal porto de Brejo Grande, o porto da marinha, o dia a dia era integrado às atividades da vida ribeirinha e suas interações com a margem alagoana. Brejo Grande era, e ainda é, ponto de passagem para a cidade de Piaçabuçu, a derradeira da margem esquerda do Velho Chico. A balsa Estrela Guia, do companheiro Zé da Balsa (ver Luzitânia – Vinte anos – parte 4) seria a derradeira a manter as características das tradicionais balsas de madeira do Baixo São Francisco.

Imagem | Canoa de Tolda

Mesmo com problemas de saúde, mestre Nivaldo seguia seu rojão. Ele de um lado, nós de outro, volta e meia uma brincadeira de lá, uma de cá. A instalação dos estrados da canoa já fazia parte dos componentes de acabamento da embarcação.

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Também em seu canto, João Paulo, o aprendiz estagiário, fazia seus progressos e contribuía significativamente para o avanço dos trabalhos. Todos juntos, a cada dia, víamos a canoa mais perto de voltar para a margem.

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Os estrados da canoa seguiram o padrão de tábuas de madeira espessa, para aguentar a carga, o uso pesado. As peças, em segmentos a cada casa de caverna (a cada par), permite o inteiro desmonte de todo o conjunto, para manutenção, limpeza.

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Pela mesma época, já no segundo semestre, tivemos a companhia da lancha de Zé Luiz, de Neópolis, a Cédila Denize, para manutenção no porto de cima. A Cédila Denize, outrora fora a famosa canoa Itabajara de Chico de Gilherme, de Propriá.

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Também no dia a dia de beiço de rio, a secagem dos peixes salgados, a miunça que junto com os peixes maiores capturados pelas embarcações de alto mar, tinha algum uso para evitar a perda total, a regra básica da pesca intensiva, predatória.

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Na mesma época tivemos também a visita de Pedro Carpinteiro, da Capivara, que desceu do Tibiri (povoado de São Brás, acima do Porto Real do Colégio) com sua chata Iris Raine. Na carga da chata, as caixas de madeira dos futuros moitões da Luzitânia, peças magnificamente feitas por Pedro, exímio mestre carpinteiro.

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Exímio também era Mestre Nivaldo na arte de desdobrar peças com seu machado, algo que sempre admirava, a fineza do corte, a pancada exata, fixe, do ferro na madeira. O mestre extraía, com precisão milimétrica, lâminas finas, finíssimas da peça trabalhada, para chegar ao formato final, como no carro de popa, a peça que fecha a popa da canoa, para receber as ferragens que compõem o sistema de controle do traquete de popa.

Imagem | Canoa de Tolda

A tolda é das estruturas da canoa das mais interessantes e trabalhosas para sua realização. O preparo dos arcos, peças curvas em geral feitos com craibeiras, deve ser rigorosamente alinhado para que as tábuas de fechamento tenham o mais harmonioso aspecto.

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Os dias vão correndo, o trabalho é puxado, as tarde se aproximam, mas estão todos motivados com os bons resultados. De fato, a Luzitânia, bela, é objeto de atenção no dia a dia do porto da marinha.

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As pessoas, indo ao rio para seus afazeres, como lavar roupas, tal como Joselice e sua filha Valéria, desviam seu caminho para perto do estaleiro para um rápido alô, uma prosinha, uma parada, uma mirada na canoa.

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Nas noites após o trabalho, a canoa iluminada assume feições mais viajantes e não era raro que pessoas se deslocassem para uma diferente admiração das formas. Mesmo para nós, ali, de cedo até a boca da noite, o retorno noturno era quase uma regra. A dormida era mais tranquila, com as navegações nos sonhos.

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Com o carro de popa em seu lugar, fechando a canoa, “agora a canoa tá com cara de canoa, com o carro assentado…” fez questão de colocar Mestre Nivaldo quando finalizamos a colagem da peça. De fato, tudo mudou: era uma canoa, do bico de proa até sua popa.

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O carro de popa é uma sofisticada peça que além de receber os trancos da escota do pano de popa, sobretudo nas passagens de pano com vento forte, de forma estética, muito refinada, envolve a cabeça do leme, integrando todas as peças em solução prática, inteligente e robusta de amarração da popa.

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As voltas do carro de popa são peças estruturais que distribuem o esforço da torção da escota para a tabica (peça vertical ao longo da borda da canoa) que devem ser feitas em madeira pesada. E, claro, devem ser finamente trabalhadas para fazer uma transição orgânica, quase que invisível, entre a linha da borda da canoa e a linha da popa.

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Como externamente, no interior, cada milímetro foi devidamente impregnado, sem que, contudo, as características originais da embarcação fossem afetadas.

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Em meados de 2005 a canoa já se encontrava impregnada com camada inicial de resina epóxi para estabilização da umidade da madeira. Mas inúmeros detalhes e componentes ainda restavam para realização e montagem.

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No arco do beque, o primeiro arco da tolda, são instalados os gigantes, um de cada lado: peças muito espessas em madeira de alta densidade, destinadas a transmitir o grande esforço do mastro de proa (apoiado apenas no banco de proa e no beque de proa) para a caixa estrutural desta zona.

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Como externamente, no interior, cada milímetro foi devidamente impregnado, sem que, contudo, as características originais da embarcação fossem afetadas.

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Também na zona do mastro de popa são inúmeras as peças destinadas a, de forma sempre inteligente, estética, distribuir os esforços. A concepção estrutural destas embarcações, aparentemente rudimentares, é extremamente sofisticada tendo em consideração o pulo tecnológico que ocorreu, por volta de 1920, com a adoção da mastreação que conhecemos hoje, dos dois traquetes.

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Começa a confecção dos componentes da mastreação e Mestre Dedé, de Brejo Grande, é engajado nesta tarefa. Vergas, pinos, serão lavrados por ele e, como os cascos, também receberão a aplicação da resina epóxi.

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Na outra ponta, Mestre Nivaldo toca a lavra dos mastros, plainando, raspando, acertando, deixando-os perfeitos. Magníficos.

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Com a construção da mastreação, o trabalho de restauro da célula da Luzitânia se aproxima de seu término. Restarão ainda os acabamentos, ferragens, detalhes muitos, que deverão, como o casco, ter realização igualmente rigorosa para a manutenção de todas as características da canoa.

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Dezembro entra com a canoa já pintada com a camada base de tinha epóxi conferindo ao conjunto a proteção ideal para sua conservação.

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Imagem em destaque no topo – Ao final de 2005, a Luzitânia começa a mostrar presença, com sua pintura de base, alva. A longa espera está mais próxima do final.  Imagem | Canoa de Tolda