Da primeira e marcante visão da canoa Luzitânia em dezembro de 1997, são vinte essenciais anos de convivência com a embarcação símbolo do Patrimônio Naval do Baixo São Francisco.
Após a inundação do estaleiro da Luzitânia no Mato da Onça, no alto sertão, a canoa é salva e rebocada para Brejo Grande, SE, na foz. Ali, em novo local, é feita nova estrutura provisória para o término do restauro da canoa.
Carlos Eduardo Ribeiro Junior
Publicado em 03 de maio de 2019
2005
Após alguns dias ainda semi submersa no porto da marinha de Brejo Grande, a canoa é puxada para terra. Uma das preocupações era o risco de contaminação pelos buzanos, molusco que ataca e devora madeiras, organismos então muito presentes na região. Com o auxílio de um trator, contribuição de Seu Sam, produtor de arroz paraibano radicado em Brejo Grande, a canoa vai rolando sobre troncos de coqueiros preparados para a operação. Em segurança, a Luzitânia é instalada perto de seu local para os términos do trabalho.
Imagem | Canoa de Tolda
Havia muitas décadas que uma canoa de tolda não aportava na cidade onde, outrora, inúmeras outras, famosas como a Bandeirante, a Pinto Macho, dentre tantas, tinham seu porto de origem: as canoas da praia. Ainda encharcada, à espera da construção de uma proteção, a Luzitânia, por vários dias, é fonte de grande curiosidade.
Imagem | Canoa de Tolda
O material para o futuro estaleiro, que deveria seguir à risca o estilo das estruturas tradicionais para trabalhos de carpintaria naval vai chegando: peças e madeira (certificada) brutas, palhas de coqueiro para a cobertura. Para que todas as instâncias fossem atendidas, visando possíveis e já esperados conflitos, foi obtido alvará de instalação provisória – na Secretaria Municipal de Obras – do estaleiro para o restauro da canoa Luzitânia. Documento que se mostraria muito pertinente no futuro.
Imagem | Canoa de Tolda
Os festejos juninos se aproximavam. Fomos contatados pelo professor Josué, do EJA – Educação Para Jovens e Adultos, propondo a realização de um evento cultural educativo diferenciado para aquele São João de 2005. Seria a retomada do valor da canoa de tolda com elemento da cultura do Baixo. O evento seria majoritariamente organizado pelos alunos e alunas do EJA e outros apoiadores. Não haveria envolvimento do setor público, no caso a Prefeitura, exceto para a autorização de ocupação da praça do porto da Marinha. A proposta foi encampada e a organização teve início.
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O estaleiro da Luzitânia, ela própria, a praça, foram magnificamente decorados pelos alunos com palhas de coco, bandeiras. Nunca fora vista, ao menos recentemente, em Brejo Grande, tamanha mobilização, tanta animação. Um esforço coletivo belo, produzindo o que seria uma grande festa, onde o recurso público consumido seria uma pequena elevação de consumo de energia de iluminação pública com as gambiarras.
Imagem | Canoa de Tolda
Os trabalhos, cartazes, pinturas, esculturas, iam chegando e sendo cuidadosamente arrumados – com estética perfeita – para a exposição que durou todo o dia. O vai e vem do povo não parava. Muitas pessoas mais velhas, conhecedoras do rio sem barragens, das cheias, das navegações, se encantavam e se contavam histórias. Muito reencontros.
Imagem | Canoa de Tolda
Na boca da noite, o local estava armado. A praça começava a se encher, alegre e sem a presença de ilustres oficiais, em auto e providencial recolhimento: ali não havia espaço para prosas descabidas. O local estava pacificamente ocupado e tendo, naquelas poucas horas, seu comando (uma luz para um rumo melhor, talvez, naquele momento) por conta das pessoas da cidade.
Imagem | Canoa de Tolda
O local pronto, tão bonito, iluminado, repentinamente se esvaziou, todos puxando para a hora do café: depois viria mais, muito mais. Naquela rápida horinha, da praça arrumada, meio que vazia, foi o momento para sentar num banco de cimento, e pensar na trajetória daquela canoa. Navegações difíceis, teimosas, da canoa do sertão, canoa de cangaceiro que ali na água de perto da água salgada, declarava que voltaria à margem, ao movimento. Luzitânia, antiga Rio Branco, a Rio Brando de Zé Martins, da Ilha o Ferro, a serviço do “homem” e parte de sua cabroeira, nos anos brutos da década de trinta. Canoa insistente.
Imagem | Canoa de Tolda
Quando a zoada do batuque começou pesada, na entrada da cidade, um quilômetro e meio distante da praça da marinha, o povo começou a se juntar. E deu bom. Com seus cartazes, inclusive com posições claras contra a malfadada transposição, a moçada do EJA puxou as gentes, dando a partida para o primeiro auto intitulado – a rapaziada dizia com a boca cheia, alegre – arrastão cultural de Brejo Grande.
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Talvez pela primeira vez – provavelmente única, no Baixo São Francisco, ao menos, houve uma naturalmente espontânea manifestação/declaração popular de reconhecimento de patrimônio cultural voltada para o valor de uma embarcação tradicional, a canoa de tolda. Palavras de ordem pelo rio São Francisco, pela canoa Luzitânia, o porto cheio de gente, mas todos em paz.
Imagem | Canoa de Tolda
Cidade pequena, derradeira da banda de Sergipe, antes da pancada do mar, Brejo Grande foi contaminada pela onda alegre, positiva e provocadora daqueles jovens que dedicaram boa parte de seus dias anteriores para o preparo da manifestação. Como diria o finado Zé Pezão, apaixonado por canoas, a bordo de sua Daniella: “fica para a história do Brasil…” do Brasil, não sabemos, para o Baixo, com toda a certeza.
Imagem | Canoa de Tolda
Canoas de tolda, canoas de tolda, canoas de tolda. Cantadas, sacramentadas, naquele início de século 21, por uma turma que jamais vira uma sequer – a não ser nas memórias viajantes de seus vôs e vós, nas histórias contadas com olhos molhados, como as embarcações rainhas do rio de baixo.
Imagem | Canoa de Tolda
Com a ajuda de nosso primeiro estagiário aprendiz no restauro, João Paulo, filho de mestre Dedé, carpinteiro naval dali mesmo, íamos tocando o rojão da obra, com mestre Nivaldo seguindo com suas preciosas explicações sobre cada peça a ser realizada e instalada na Luzitânia. Segredos de memória pela primeira vez compartilhados.
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Imagem em destaque no topo – Em seu estaleiro provisório, no porto da marinha, em Brejo Grande, o restauro da Luzitânia prossegue no início de 2005. Imagem | Canoa de Tolda