Canoas de Tolda

As canoas de tolda são, sem dúvidas, o exemplo do apogeu da tecnologia naval e também das navegações de longo curso tradicionais no trecho baixo do rio São Francisco até meados do século XX. A denominação “de tolda” está relacionada à particular estrutura na proa da canoa, uma cabine fechada, a tolda.

Sua importância vai além, pelo fato de que tais embarcações são exemplo particular de repositório de inúmeras tradições navais, de diversas partes do planeta, que vieram, no Baixo São Francisco, criar uma linhagem única de embarcações altamente sofisticadas. Hoje, apenas a canoa Luzitânia ainda navega e, apesar de enquadramento como bem tombado pelo IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, seu futuro é incerto.

Possíveis Origens

Os primeiros registros do tipo de embarcação, ainda em seus primórdios, são do final do século XIX pelo excepcional registro fotográfico de Abílio Coutinho em viagem ao longo do Baixo São Francisco.  Os exemplares da época, tinham uma tolda rústica coberta com folhas de palmeiras e a propulsão se dava a remos, varas e, em situações de subida do rio com os ventos gerais de leste, com uma armação de velas rudimentares, os chamados panos asa de brabuleta, abrindo para ambos os bordos: permitiam unicamente a navegação com vento em popa.

O mais antigo registro de canoas de tolda conhecido, pelo fotógrafo Abílio Coutinho, em 1869. Imagem | Abílio Coutinho

É interessante notar ainda, a partir das fotos citadas com imagens que foram produzidas em seguida, já no século XX, a evolução dos cascos, sobretudo nas zonas da proa e da popa. Aquela em particular, com a introdução do carro de popa, a partir da adoção dos traquetes, plano vélico sofisticado herdado das barcaças costeiras.

Ao longo de sua evolução, as canoas de tolda foram gradativamente sendo melhoradas para o aumento de sua eficiência na navegação de longo curso no Baixo São Francisco vindo a se tornar o pilar do transporte de carga geral entre o alto sertão (a partir do porto de Piranhas, que seria a integração com o modal do transporte ferroviário, a partir do final do século XIX até o início dos anos 60 do século seguinte, de ligação com o sub-médio São Francisco, na cidade pernambucana de Jatobá, atual Petrolândia.

Processo Construtivo

É importante citar que a construção naval do trecho baixo do São Francisco é uma tecnologia sem escrita, sem registros, inteiramente apoiada em tradição oral (dos antigos mestres para seus escolhidos seguidores, em geral filhos, familiares ou aprendizes escolhidos a dedo). Não são conhecidos, até o momento, planos de embarcações (sejam elas de qualquer classe ou porte) ou instrumentos sofisticados como o graminho baiano para a construção de saveiros. Apesar disso, cada mestre tinha sua visão/estilo para a construção de suas embarcações, seguindo suas regras, que eram relações entre comprimento, boca (largura máxima do casco), pontal ( altura máxima do casco) e configuravam linhagens de embarcações reconhecidas pelas pessoas da margem que ainda ao final do século vinte citavam “aquela lancha acolá foi feita por mestre fulano, óia a saída d’água boa, cabra véio, só mestre fulano arma uma canoa assim…” .

Todas essas informações eram guardadas de memória e eram inicialmente aplicadas, na concepção imaginária do projeto, a partir da demanda por parte do armador, que tinha, por exemplo, necessidade de “uma canoa de quinhentos sacos“. Um saco corresponde ao padrão regional de peso de 60 kg, portanto, uma canoa de quinhentos sacos tinha capacidade para trinta toneladas métricas. A partir deste ponto, o mestre experiente já tinha completamente idealizada a forma geral da embarcação, para a feitura de um molde básico da seção média (um simples vergalhão de ferro para a busca das cavernas no mato, que seriam feitas com raízes e parte do tronco da braúna), outro para o rombo de proa e o derradeiro para o rombo de popa (as peças principais de início e fim da embarcação) igualmente confeccionados com braúna.

A construção do casco seguia um padrão muito característico na região: taboados espessos, em geral de cedro, enquanto disponível, sobre cavernas de braúna relativamente espaçadas, sem quilha ou sobrequilha. Os principais elementos de estrutura longitudinal, os dormentes (peças localizadas na cabeça das cavernas, na borda interna do casco), eram ligavam todas as cavernas da popa até a face posterior do rombo de proa (a tradicional roda de proa, denominação geral em outras regiões do Brasil) formando uma viga garantindo certa rigidez ao conjunto.

Os cascos tinham formas arredondadas, principalmente nos colos, zona de transição entre o costado e o fundo. As peças formadoras dos colos eram lavradas para a elaboração das curvas e exigiam perícia por parte dos mestres: machado, enxó, formão, sobretudo, eram as principais ferramentas para a lavra.

Na Barra do Ipanema, AL uma canoa de tolda dos primórdios. Imagem | Abílio Coutinho

A estrutura básica da tolda, na proa, tinha seus arcos compostos por peças ( de galhas de craibeiras,  espécie nativa da região, relativamente abundante e com sinuosidade de formação de copa característica )  escolhidas pelos madeireiros mateiros aproveitando as curvas naturais da melhor forma. Da mesma madeira, das forquilhas da galharia, eram fabricadas peças como as caranguejas, extremidades das vergas (as longas peças horizontais que armam as bordas inferiores das velas) e pinos (as peças que formam a borda superior das velas) que faziam a articulação com os mastros, estes em pau d’arco (roxo ou amarelo, aquele de preferência) ou, em canoas da praia, em sapucaia de pilão, em vários casos.

Naturalmente, a construção de embarcações, não só na região como em demais outras do Brasil, era atividade de grande demanda de madeiras com características mecânicas e de durabilidade que permitissem o desempenho idealizado: as madeiras mais nobres das matas. Com a supressão das espécies sem qualquer manejo, a matéria prima foi ficando escassa comprometendo gradativamente a construção naval de embarcações de maior porte no Baixo São Francisco (situação que acompanhou, de forma quase sincronizada, a quebra da economia vazanteira, no início da segunda metade do século passado) a partir  das políticas públicas que aniquilaram com a navegação de cabotagem (por conseguinte, com a navegação fluvial de longo curso no Baixo São Francisco) e, em seguida, com a regularização do rio a partir da construção da barragem de Sobradinho).

Portanto, o nascimento da canoa de tolda, seu apogeu e declínio foram tempos relativamente curtos (final do século 19 e pouco mais da metade do século 20)  já no final da longa história das navegações de longo curso no Baixo São Francisco.

Nesta relação recursos naturais x linha evolutiva das canoas de tolda, o Baixo São Francisco testemunho a embarcação máxima, a canoa Canindé, de Ercílio Brito, de Propriá, com capacidade de 1200 sacos, seguida pela canoa Marialva com capacidade da ordem de 1000 sacos. Fabulosas embarcações que marcaram o ápice da evolução tecnológica da construção naval do rio de baixo.

A fabulosa canoa Canindé, dos Brito, de Propriá, com seus 1200 sacos marcou o apogeu da construção naval nos anos 40 do séc. 20. Imagem | Casa do Penedo

O Apogeu das Canoas

Apesar da vida e evolução ligeira das canoas de tolda, as tradições e tecnologias navais do Baixo São Francisco atingiram outras regiões da bacia, como os sub médio e médio, a partir da migração de armadores sergipanos, inicialmente, e alagoanos, que levaram suas embarcações para o rio de cima em busca de novos mercados de transporte e comércio fluviais (leia o artigo Remos x Panos: as Sergipanas Venceram, jornal A Magem, set/out 2009) O espírito desbravador destes canoeiros, que desmontavam suas embarcações no porto de Piranhas, embarcavam-nas no trem para a então Jatobá (atual Petrolândia, PE), onde remontavam cascos e mastreações e dali irradiavam suas navegações que alcançaram as cidades baianas de Barreiras (no alto rio Grande) e de Bom Jesus da Lapa foi decisivo para a mudança radical na navegação, cultura e construção navais naquelas regiões. E fatal para determinar o decisivo fim das embarcações de figura, as grandes barcaças que percorriam o rio de cima entre Pirapora, no alto São Francisco, e as cidades de Juazeiro e Petrolina.

Registros fotográficos raros, de autores desconhecidos e de outros, famosos, como o francês Marcel Gautherot, atestam a evolução de canoas de tolda concebidas e construídas naquela região e embarcações locais “canoadetoldadizadas” para enfrentar a concorrência com as sergipanas que, mesmo ao final das navegações a vela, seriam a base da construção dos cascos motorizados.

Ainda com referência à evolução tecnológica, talvez a canoa que tenha representado a maior busca pela eficiência e inovação tenha sido a Marialva, contemporânea da Canindé, que foi base do experimento de uma mastreação com três traquetes, a exemplo das barcaças de três paus. Apesar de exuberância estética sem igual, muito provavelmente o tipo de armação não teve o resultado esperado, pois em seguida a mesma Marialva teve sua mastreação original, com dois grandes traquetes, reincorporada.

A canoa Marialva com sua mastreação original, dois traquetes. Imagem | Casa do Penedo

A canoa Marialva e o experimento com os três traquetes. Imagem | Casa do Penedo

O Fim do Reinado

Com o declínio das navegações de longo curso no Baixo São Francisco, a construção de embarcações como as canoas de tolda também viu o seu fim. Nos meados do século 20, com a priorização do transporte rodoviário (em todo o Brasil) por políticas públicas vinculadas a determinados segmentos, pôs fim à navegação de cabotagem. Esta, por sua vez, sem a ligação do então importante porto do Penedo, a porta principal do Baixo São Francisco para o restante do país e do mundo, provocou o desmoronamento da navegação fluvial de longo curso na região.

As canoas de tolda foram essenciais na movimentação da produção no Baixo. Imagem | Casa do Penedo

No final dos anos 70 do século passado, com a entrada em operação da barragem de Sobradinho, o fim dos ciclos de cheias naturai’s no Baixo São Francisco foram a pá de cal para a quebra da economia vazanteira: as lagoas maginais não mais se encheriam e proveriam a produção que era escoada através das canoas de tolda e chatas.

No final do século 20, anos 90, apenas dois remanescentes ainda navegavam em sua forma original (muitas canoas de tolda foram convertidas, com a remoção da mastreação e adaptação de cabines, em embarcações motorizadas de transporte de passageiros: a sobrevida das mesmas e das linhas de longo e médio curso, não mais singradas pelas lanchas tradicionais): a canoa de 250 sacos Luzitânia com porto no povoado Curralinho, no alto sertão sergipano, e a canoa Paladina, já bem adulterada, também na mesma margem, no povoado Bonsucesso.

A Luzitânia foi adquirida, em 1999, pela Sociedade Canoa de Tolda que, durante cerca de dez anos, promoveu seu restauro e retorno da embarcação às águas do São Francisco em fevereiro de 2007. A canoa viria a ser tombada pelo IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em 2010: processo que permaneceu em trâmite por dez anos.

Já a Paladina, teve seu fim abandonada e naufragada no porto do povoado Bonsucesso, no alto sertão sergipano.

As épocas da construção das duas canoas, a Luzitânia, por volta dos anos vinte, do século XX e a Paladina, nos anos 50, do mesmo século, mostram a ruptura ocorrida na navegação e, ao mesmo tempo e por razões diversas, casos particulares de sobrevivência de objetos e atividades extintas de grande valor simbólico para a região.

No presente, a Luzitânia é o derradeiro remanescente da linhagem das canoas de tolda. Imagem | Pedro Bocca

Imagem do topo – A canoa de tolda Luzitânia no Curralinho, 1998 – Acervo Canoa de Tolda

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