A Canoa Luzitânia
A Luzitânia e a Sociedade Canoa de Tolda
A Luzitânia, embarcação tradicional do tipo canoa de tolda com capacidade de 200 sacos (cada saco corresponde ao padrão de peso de 60 kg), hoje tombada pelo IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (em dezembro de 2010, num processo que levou dez anos) é das mais antigas ainda hoje em navegando no Baixo São Francisco. Ainda que registrada na Agência Fluvial da Capitania dos Portos de Alagoas em Penedo somente na década de 70 do século passado, os registros orais de sua construção remontam aos anos 20.
Anteriormente, com o nome “Rio Branco”, pertenceu a Luis Martins, da Ilha do Ferro, povoado de Pão de Açúcar, no alto sertão alagoano. Nessa época, segundo relatos de inúmeros canoeiros e moradores da região, foi utilizada por Lampião e seus cabras (veja o depoimento de Tonho da Ilha do Ferro, no documentário De Barra a Barra ), isso já nos anos 30, quando da fase sedentária do cangaceiro estabelecido no Baixo São Francisco. Em seguida veio uma série de proprietários, e a canoa foi engajada no transporte de carga geral como queijo, leite, querosene e gasolina, entre o sertão e a região de Penedo.
Em 1997, já havia conhecimento de sua existência, através de informações locais, pois junto com a Paladina (a renomada canoa Paladina, que obteve fama nas mãos do finado Eduardo Tamborim, de Propriá), eram as duas derradeiras canoas de tolda navegando no Baixo São Francisco. Uma terceira, a antiga Baianinha, e renomeada de Daniella, se encontrava em terra em Penedo, tendo como proprietário o ex-borracheiro Zé Pezão (veja o documentário Na Veia do Rio), que brigava contra tudo e todos para colocá-la navegando. Essas três embarcações eram o remanescente da história das navegações e do rico Patrimônio Naval do Baixo São Francisco.
Em dezembro do mesmo 1997, acima de Gararu, nas proximidades da (então muito grande) coroa das Intãs, em Gararu, SE, ocorreu a primeira visão da Luzitânia. A visão inesquecível da Luzitânia navegando sob vento forte de final de tarde sertaneja foi decisiva para consolidar a ideia (e a urgência) da compra para a sua preservação.
É fato que, na mesma época, houve ciência do interesse do Museu Nacional do Mar, de São Francisco do Sul, em Santa Catarina, na aquisição da Luzitânia para destiná-la ao seu acervo. Ainda que entendendo a posição do museu e conhecendo sua importância, a interpretação desta entidade para o caso era bem diversa: a Luzitânia, agora a derradeira navegando (pois a Paladina, por abandono de seu proprietário, acabava de se afundar no povoado Bonsucesso, no Poço Redondo, Sergipe), deveria, claro, ser recuperada, mas para ficar navegando no Baixo.
Sem os recursos para a compra da canoa, a recém formalizada Sociedade Canoa de Tolda iniciou uma difícil negociação com o então proprietário da Luzitânia, Fernandes de João Pidoca, do Curralinho, povoado sergipano do município do Poço Redondo. Ao mesmo tempo, com a intenção de compra da embarcação pelo Museu do Mar, articulou com o piloto canoa, Abel Aleijado, uma estratégia para “esconder” a embarcação, para que não fosse achada pela equipe daquela instituição. Era um risco que não podíamos correr. Quando o pessoal do museu batia no sertão, a canoa era deslocada para jusante e, quando a equipe batia na praia, para montante. E assim foram sucessivas movimentações para garantir a aquisição da canoa.
Enquanto isso, corria-se contra o tempo na também muito difícil busca pelos recursos financeiros para a compra da canoa. A busca pelo dinheiro realçou o total desvalor que tal patrimônio – a Luzitânia, com toda a sua bagagem de história e significado para as pessoas do Baixo São Francisco – tinha. Foi apresentada a proposta de apoio a inúmeras empresas da região, que não esboçaram qualquer interesse para a cobertura dos R$ 4.000,00 (quatro mil reais) pedidos por Fernandes naquela época. Sem o dinheiro, o proprietário Fernandes se impacientava e, por diversas vezes, ameaçou atear fogo à canoa, desmantelá-la, abandona-la na margem.
Finalmente, graças a uma boa negociação com o consulado da Alemanha no Recife, conseguimos aprovar a proposta da compra da canoa, através de recurso de um micro-projeto de cunho sócio-cultural, o que foi aceito. Com o dinheiro em mãos, nova negociação com Fernandes de João Pidoca, que foi encontrado não no Curralinho, mas na casa de uma irmã, no conjunto João Alves, na grande Aracaju. Isso foi no final de 1998.
Foi sacramentada e marcada a transação para ser finalizada na Agencia Fluvial da Capitania dos Portos de Penedo, em Alagoas, onde a Luzitânia era registrada. Também, vinculou-se a compra da canoa ao pagamento (incluídos nos quatro mil reais) de mil reais para o piloto Abel Aleijado, que nunca recebera qualquer pagamento formal pelo tempo que passara embarcado. Com muita resistência, finalmente Fernandes aceitou.
“No dia marcado, combinamos com Abel, em janeiro de 1999, a ida a Penedo. Com o dinheiro num envelope, com medo de algum infortúnio, pegamos a estrada de Aracaju para Penedo. Lá chegamos, encontramos Abel, com Zé Pezão (a canoa Daniella, em reforma, estava exatamente em frente à Capitania). Esperamos quase que todo o dia, e Fernandes não apareceu. Desanimados, preocupados, com a canoa a cada dia em situação pior, retornamos a Aracaju para então organizarmos outra busca a Fernandes. Após muitas idas ao Curralinho, conseguimos encontrar o cidadão e soubemos, por outros, que no dia combinado o cabra havia ido a Penedo e ficara escondido, nos observando, sem se apresentar. Sabe-se lá, por que razão“, relata Carlos Eduardo Ribeiro Junior, um dos fundadores da entidade e negociador da compra da embarcação.
Foram feitos novos contatos com Fernandes de João Pidoca e agendada nova e definitiva data, sempre em Penedo. Para alívio de todos, Fernandes finalmente apareceu e, no momento da transação, já no cartório, mostrou nova e inesperada resistência ao trato de passar os mil reais para o piloto Abel. Criou-se um impasse, tendo Abel chegado a quase desistir do arranjo, o que foi recusado. Seguiu-se uma espécie de barganha, entre Fernandes e o negociador da Canoa de Tolda, para então ser sacramentado o acordo do Abel, em R$900,00 (novecentos reais). Como Fernandes não assinava documentos, por não ser alfabetizado, o recibo foi firmado “a rogo”. Naquele momento a Luzitânia mudava de mãos, pela última vez, na busca de uma sobrevida não só para o objeto, a derradeira embarcação tradicional do Baixo São Francisco, mas também abrangendo as navegações históricas e o singular patrimônio naval da região.
A canoa foi comprada em situação de quase total desmantelo. Ainda navegava, porém com o casco, mastreação e estrutura comprometidos, muito pouco seria aproveitado no restauro. Não foi ao fundo graças ao empenho de Abel Aleijado, seu derradeiro piloto que, por amor a esta arte, a navegação pelas carreiras do rio de baixo, passava parte de seus dias a esgotar a água, a remendar seu casco (com o que tivesse mais próximo à mão: estopa, resto de tecidos, cimento, cola, barro, serragem…). A partir daquele dezembro, a Luzitânia passou a ser, por razões óbvias, um dos principais motivos do início da Sociedade Canoa de Tolda.
Após a aquisição a canoa foi levada definitivamente para o povoado Mato da Onça, sendo retirada da água no início de 2000, pois era grande o risco de naufrágio e perda da embarcação. A partir daquele momento, da subida da embarcação para terra, tinha início a busca por recursos que financiariam o restauro da Luzitânia.
O restauro em si é um capítulo a parte e foi possível com a implantação da iniciativa Projeto Canoa de Tolda.
O Tombamento da Luzitânia
Para melhor entendermos a complexidade do processo de tombamento da canoa Luzitânia é interessante conhecer mais sobre os aspectos técnicos e conceituais da ação. Afinal, o que é tombamento de um bem, seja ele material ou imaterial ( veja o artigo Pois Um Lugar é Tanta da Coisa ao Mesmo Tempo no jornal A Margem – Edição Mar/Abr 2010)? No sentido formal da palavra tombamento, e de acordo com o IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, tombamento é:
um ato administrativo realizado pelo Poder Público com o objetivo de preservar, por intermédio da aplicação de legislação específica, bens de valor histórico, cultural, arquitetônico, ambiental e também de valor afetivo para a população, impedindo que venham a ser destruídos ou descaracterizados.
O tombo, palavra que equivale a registro, confere ao bem, de maneira formal, institucional, o reconhecimento de seu valor histórico, cultural, afetivo, etnográfico, paisagístico, artístico, por exemplo. De acordo com o grau de importância que a questão cultural é importante pelas políticas públicas de um município ou estado, muitas vezes os tombamentos municipais e/ou estaduais se mostram eficazes, nas ações de fomento e incentivo à preservação e conservação do bem. Porém, nos casos de nossa região, o tombamento de um bem pelo órgão máximo, no caso ojá citado IPHAN, proporciona maior relevância ao ato, sem dúvida alguma.
O bem tombado não é desapropriado, isto é importante ficar claro. O proprietário de um imóvel, de uma obra de arte ou, como no caso da Luzitânia, a Sociedade Canoa de Tolda, em momento algum tem eliminada a propriedade ou a posse do objeto: a embarcação.
Outro aspecto interessante é que qualquer cidadão, no pleno gozo de seus direitos como tal, pode apresentar ao IPHAN a proposta de tombamento de um bem, material ou imaterial, desde que devidamente documentada. A proposta deve situar a importância do bem para uma determinada comunidade, por exemplo, se houver laços afetivos, ou a relevância histórica, artística, arqueológica, risco de perda, etc.
A proposta é recebida e protocolada pelo IPHAN, em geral através das regionais nos estados, as quais, por sua vez, encaminham a documentação para os escritórios centrais, em Brasília. Ali, de acordo com o segmento do bem em questão: se patrimônio material, imaterial ou arqueológico, a documentação segue para o DEPAM – Departamento de Patrimônio Material, DPI – Departamento de Patrimônio Imaterial ou para o CNA – Centro Nacional de Arqueologia.
Foi o o procedimento que a Canoa de Tolda apresentou, como veremos adiante, ao encaminhar em 2000 sua proposta para a o tombamento da canoa Luzitânia à Superintendência Regional do IPHAN em Sergipe.
Quando a Canoa de Tolda adquiriu a Luzitânia, ainda em 1999, de imediato percebemos a dificuldade que teríamos, com poucos recursos e sem um apoio institucional forte, para agregar reconhecimento e valor à real importância daquela embarcação. Além do que representava para a população menos jovem do Baixo São Francisco, o valor de último exemplar, ainda ativo, testemunha de uma época, de uma tecnologia praticamente morta, de práticas seculares de navegação e convívio com aquelas margens.
Tomada a decisão , foi elaborado o conjunto de documentos para formar a proposta, que foi protocolada no IPHAN-SE em 2000. Seria a primeira vez, no Brasil, que proposta desta natureza chegava ao órgão: o reconhecimento de uma embarcação simples, construída por pessoas simples mas de grande importância para nossas margens, como algo a ser protegido para as gerações futuras.
Com a percepção da dificuldade do recebimento e acatamento da proposta pelo IPHAN, a Canoa de Tolda não mediu esforços no preparo de todas as justificativas, além de elaborar um completo projeto de restauro da Luzitânia: naquele ano de 2000, a canoa se encontrava em terra, no Mato da Onça, para que não fossem perdidas suas formas e características originais. Simultaneamente, se buscavam recursos e juntavam-se os materiais para a obra, passo a passo.
Porém, não se imaginava que a espera duraria um tempo considerável. Entre o protocolo da proposta de tombamento e a sacramentação do ato, correram cerca de 10 longos anos. Alguns eventos contribuíram para que a espera não fosse ainda maior.
Quando a Canoa de Tolda adquiriu a Luzitânia, ainda em 1999, de imediato percebemos a dificuldade que teríamos, com poucos recursos e sem um apoio institucional forte, para agregar reconhecimento e valor à real importância daquela embarcação. Além do que representava para a população menos jovem do Baixo São Francisco, o valor de último exemplar, ainda ativo, testemunha de uma época, de uma tecnologia praticamente morta, de práticas seculares de navegação e convívio com aquelas margens.
Vejamos:
Em 2008, ocorre o lançamento oficial do Projeto Barcos do Brasil. Este programa, de valorização e salvaguarda das embarcações e elementos do Patrimônio Naval Brasileiro, começou a ser discutido no 2o. Encontro do Patrimônio Naval, ocorrido em julho de 2007, em São Luiz do Maranhão.
No mesmo ano, a Canoa de Tolda deu entrada no MinC – Ministério da Cultura, do Projeto Luzitânia. A proposta era de enquadrar as ações de proteção, conservação e manutenção da canoa dentro da Lei Rouanet, visando patrocínio. Ocorre, então, uma casualidade que ao mesmo tempo provocou muitas idas e vindas, mas foi definitiva para a arrancada final rumo ao tombamento: o Conselho Nacional de Incentivo à Cultura, o CNIC, ao se reunir para avaliar o projeto Luzitânia, exigiu, por parte do MinC, a documentação do tombamento. Até então, a entidade contava apenas com o processo de tombamento em curso.
Com a exigência em mãos, foi solicitado ao IPHAN uma solução para o problema. O órgão, naquele momento, se viu sem opção a não ser emitir uma notificação (que já qualifica o bem como tombado) que teria validade para a sacramentação do processo junto ao MinC. Caso negasse, seria o mesmo que recusar o enquadramento da Luzitânia e impossibilitar o acesso aos recursos já negociados com o patrocinador. A notificação foi emitida já no termino do prazo para a entrega dos documentos, mas tudo ocorreu da melhor forma. Uma vez o projeto aprovado, o patrocinador imediatamente encaminhou os recursos possibilitando a manutenção da Luzitânia nos anos de 2009 e 2010.
Finalmente, em dezembro de 2010, a canoa Luzitânia foi tombada em seção histórica do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural do IPHAN, no Palácio Capanema, no Rio de Janeiro. O tombamento foi uma operação conjunta, pois ao mesmo tempo, seguindo o processo da Luzitânia, foram decretados como bens móveis protegidos o saveiro do Recôncavo Baiano Sombra da Lua, a canoa costeira maranhense Dinamar e a canoa de pranchão gaúcha Tradição.
Durante este tempo, além de constante solicitação de informações de andamento do processo, uma discussão intensa era levada dentro do IPHAN, o que, por sua vez, produziu uma série de documentos interessantes. Tivemos:Estudo de tombamento da Luzitânia, para dar base às deliberações, que foi seguido de um Memorando do DEPROT com considerações também interessantes sobre a Luzitânia.
Para a reunião definitiva de dezembro de 2010 a equipe do IPHAN produziu um excelente vídeo sobre a Luzitânia que hoje faz parte de nosso acervo disponível.
Imagem do topo – A canoa de tolda Luzitânia no Curralinho, 1998 – Acervo Canoa de Tolda
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