PATRIMÔNIO NAVAL 

Os Primórdios das Navegações no Baixo São Francisco

Se nos voltarmos para o Baixo São Francisco nos períodos próximos ao ano de 1501, quando os primeiros europeus aportaram na foz, observaremos que, à atividade da navegação nativa (01) no grande Opará veio se agregar a tecnologia/tradição naval europeia (Figura 52). Esta, de forma consorciada e miscigenada, passou a ser utilizada na elaboração de equipamentos de interiorização dos ocupantes de além-mar ao longo do vale do São Francisco.

Não havia muita escolha, uma vez que, por terra, relações difíceis com o habitante local e o semi-árido bruto – para o europeu – não propiciavam facilidades de propagação e instalação de suas ocupações e usos do novo território.

Das embarcações nativas ao encontro de tecnologias, em 1501, na foz do São Francisco, o amanhecer de uma tradição local – Gravuras de Theodore de Bry, c. 1635

Uma característica importante ocorrente na região e condição essencial, a grande disponibilidade dos recursos naturais (as madeiras, basicamente, nas matas ripárias e costeiras, próximas à foz da então exuberante Mata Atlântica) para os diversos atores, locais e chegados, foi fator determinante para a consolidação, evolução e posterior declínio da navegação tradicional em toda a bacia do São Francisco.

Populações nativas que detinham a tecnologia dita rudimentar da arte naval nestas terras, sem dúvida, há tempos se beneficiavam do perfeito conhecimento das madeiras locais para a construção de suas ygaras de portes variados. E, enquanto houvesse a possibilidade de fornecimento da matéria-prima, seguia a evolução das construções navais na região onde a tecnologia para o desenvolvimento de projetos (fossem eles produzidos por informações orais ou escritas quando da chegada dos europeus) era tributária das qualidades físicas e mecânicas das espécies da flora nativa selecionadas de acordo com os usos idealizados. Situação que valia tanto para as tecnologias nativas como para com as posteriores miscigenações.

Assim, um exemplo, as canoas de tolda e barcaças costeiras dos séculos XIX e XX puderam “crescer” de porte (aumentando suas capacidades de carga) enquanto havia paus d’arco (Handroanthus impetiginosus) para a produção de grandes mastros, a principal estrutura de planos vélicos capazes de propulsionar embarcações com sua carga. Ao mesmo tempo havia a fibra do croá (Neoglaziovia variegata) para a manufatura de cabos torcidos (cordas), e ainda as braúnas (Schinopsis brasiliensis), preferenciais para a construção do cavername, cedros portentosos para o taboado do casco (Cedrela fissilis) e outras peças de grande demanda física na estrutura das embarcações.

A Influência Européia (e de outras terras)

Do lado europeu, aqui primeiro baixaram os portugueses que, além das tradições e tecnologias europeias (mediterrâneas, ibéricas, dentre as principais), também traziam o que haviam adquirido nas impressionantes investidas ao longo das costas africanas, árabes, do subcontinente indiano e da Ásia. Também franceses adentraram o São Francisco, em busca da madeira do pau-brasil, mas sem a instalação de um sistema de ocupação mais organizado, o que facilitou, em seguida, o seu desalojamento definitivo da região.

No movimentado Penedo batavo, o aporte de mais influênciaspara a consolidação da navegação e das tradições navais do rio São Francisco. Jacob van Meurs, c. 1671. In: Atlas of Mutual Heritage

Mais adiante, no século 17, viriam os holandeses, que cumpririam quase vinte e cinco anos de permanência no Nordeste brasileiro, tendo a cidade do Penedo como um porto de importância estratégica, global, além da capital tropical neerlandesa Olinda.

É importante a percepção de Penedo como um porto onde embarcações das mais diversas origens cá baixavam os ferros e, em seguida à longas travessias do Atlântico, carregadas com itens para o abastecimento das colônias, certamente necessitavam de reparos, manutenções, que possibilitassem suportar o carrego das mercadorias tropicais. Assim, de forma natural, haveria uma intensa atividade naval local, com forte demanda dos recursos naturais (as madeiras e fibras vegetais).

Pela necessidade prioritária das atividades do plantation holandês e das comunicações entre as diversas localidades batavas, os ocupantes, além de contribuírem significativamente para a evolução da atividade naval no São Francisco, estabeleceram um bem organizado sistema de navegação de cabotagem na costa nordestina entre Salvador e a Paraíba, indo até o Ceará. Para tal, para cá trouxeram um modelo de embarcação, de bom desempenho em águas abrigadas (lembrando que a navegação na costa nordestina se dava no chamado “mar de dentro”, ou seja, entre os recifes de coral externos e a linha costeira) a “sumaca” (nome já abrasileirado do smack holandês) dos países baixos, a qual, gradativamente, foi sendo adequada às diversas condições de disponibilidade local de matérias-primas, além das condições de navegação ao longo da costa do Brasil.

Evoluindo, melhorando, a sumaca chegou ao século XIX e se constituiu num modelo básico distribuído ao longo de toda a costa do Brasil, inclusive até o Rio Grande do Sul. Relatos sobre o tema são fartos. E, sempre no caminho evolutivo, viria a gestar a magnífica barcaça costeira (esta com várias versões de mastreação, armação adaptadas a condições mais específicas de usos ao longo das costa leste e norte do Brasil) que singrou o litoral brasileiro, até os anos 50 do século 20, navegações que atingiram ainda as Guianas.

Navegações no Século 20

Com os primeiros contatos entre populações locais e gente de além-mar, deu-se início à formação de um conjunto de tradições culturais e conhecimentos tecnológicos específicos do Baixo, que culminou, nos anos 1940 atingindo parte dos 1960, com o apogeu das grandes canoas de tolda. Estas excepcionais canoas cargueiras foram o último estágio de evolução de uma linhagem de embarcações que buscavam eficiência máxima de navegação no Baixo São Francisco, chegando a ser exportadas para os submédio e médio trechos do rio.

A expedição Martius/Spix documentou, entre 1817 e 1820, a ainda notável exuberância das lagoas marginais do rio São Francisco. Imagem | Jardim Botânico Rio de Janeiro

No rio de cima, a tecnologia naval do Baixo São Francisco (a partir da subida de armadores sergipanos e alagoanos com suas canoas de tolda para os Sub Médio e Médio São Francisco – veja o artigo Remos x Panos: as sergipanas venceram ) que viria a provocar mudanças estruturais e definitivas na navegação entre Jatobá (atual Petrolândia), em Pernambuco, e portos distantes como Bom Jesus da Lapa e Barreiras, na Bahia. Pode-se considerar que as canoas de tolda se tornariam um exemplo raro, talvez único no Brasil e em todo o mundo, de embarcação depositária de grande número de elementos representativos do conhecimento técnico e da arte navais de quase todas as regiões dos mundos português e holandês de 1400/1500/1600/1700. Elementos que foram avaliados pela experiência local, devidamente selecionados, incorporados e aprimorados para a navegação específica no São Francisco.

Fica claro, sem dúvidas, que a navegação do rio de baixo além de sua relevância como sistema integrador/estruturante das ocupações humanas ao longo da bacia hidrográfica,  transcendeu o aspecto puramente econômico e essencial na sobrevivência da sociedade local: significava para milhares de pessoas, o povo de barco de canoa, a condição de liberdade, de mobilidade de quem vivia no beiço do rio. Uma herança cultural secular.

A atividade naval no vale do São Francisco pode ser vista como um dos principais eixos irradiadores e aglutinadores de um conjunto de manifestações que contribuíram para a formação das tradições culturais das populações ribeirinhas, particularmente no Baixo São Francisco, que era a porta de ligação do rio pelo mar com o restante do país e do mundo. Pela água seguiu, de rio acima, de rio abaixo, e foi se espalhando tudo: gente, madeira, lenha, pedras, frutos, peixes secos, cocos, mangaios da praia, coisas do sertão, bichos e histórias, muitas histórias.

Vapores, Itas e Barcaças Costeiras

É interessante notar que esta tradição naval e tecnologias que evoluíram são-franciscanamente ao longo dos séculos foram elementos indispensáveis para a eficácia, tanto dos sistemas de navegação – modernos – a vapor, que funcionavam no Baixo (as linhas entre Penedo e Piranhas, iniciadas no último quarto do século 19 durante o segundo império, formando o modal articulado com a ferrovia Piranhas (AL) a Jatobá (PE), ligando o Baixo São Francisco com o Submédio e o Alto) como também do intenso movimento de cabotagem que adentrava o rio servindo a cidade de Penedo até o início dos anos 1970.

Com os Itas pequenos da Costeira de Henrique Lage, o Baixo São Francisco, do sertão à pancada do mar, se ligava com o resto do país e do mundo. Divulgação Portogente Laire Giraud.

A navegação de longo curso entre Penedo e  Piranhas, no alto sertão, e as cabotagens (a pequena cabotagem, com as barcaças a vela ligando Penedo às cidades costeiras do nordeste e norte do Brasil; a grande cabotagem, operando com vapores costeiros oceânicos, como os famosos Itas, da tradicional Costeira, de Henrique Lage) dependiam da integração com a navegação tradicional: as canoas de tolda, chatas, realizavam o transporte de produtos locais de todo o Baixo até Penedo, e vice versa, com os produtos vindos de fora.

Em paralelo ao movimento das embarcações tradicionais, demandavam a foz do rio os pequenos e médios vapores de empresas como a Costeira (Cia. de Navegação Costeira, fundada pelo pioneiro Henrique Lage); barcaças a vela – as herdeiras da “sumaca” holandesa tropicalizada – que davam vida a uma rede de cabotagem regional capilar que atingia, para o sul, cidades como Vitória, no Espírito Santo, e de costa acima, até mesmo a Guiana Francesa – sistema complementar e alimentador da cabotagem a vapor.

A partir do porto de Penedo, vapores menores, como o Comendador Peixoto (que navegaria dos anos 1920 ao final dos anos 1960), o Penedinho e outros, davam prosseguimento às linhas de longo curso fluvial do Baixo criadas ainda no século 18, percorridas pioneiramente com os vapores Sinimbu e Paulo Afonso até Piranhas.

Porém, nas décadas de 60 e 70 do século passado, políticas públicas vinculadas a modelos econômicos que não priorizavam necessariamente a navegação – de cabotagem e fluvial; o esgotamento absoluto da matéria-prima nas margens do São Francisco – florestas e matas devastadas criaram o ambiente de decadência do transporte fluvial regional.

No início dos anos 60 do século vinte, a ferrovia Piranhas/Paulo Afonso (e Jatobá, em PE) é desativada quebrando a principal integração entre o Baixo e o Sub Médio São Francisco. Piranhas perde de imediato sua importância como porto destino/origem desarticulando as navegações fluviais de longo curso até a foz.

Rio inquestionavelmente vivo: a movimentação do porto de Penedo, do vapor da carreira do sertão nos anos 1940, e navio de cabotagem, na década de 1960. Imagens | via Casa do Penedo.

A construção dos grandes barramentos, com o fim dos ciclos naturais de cheias e a base da economia agro vazanteira,  viria, definitivamente, acelerar o ocaso e encerrar o capítulo das navegações tradicionais e das navegações ditas modernas no rio São Francisco e sua integração com a já decadente cabotagem nacional.

Continua na página 2.

Imagem do topo – Mosaico de imagens – Acervos Casa do Penedo, Canoa de Tolda, Codevasf

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