O Baixo São Francisco

Uma breve  introdução ao Baixo São Francisco

Não é fácil falar desta região, pela quantidade de particularidades que ela possui, como tantas outras, entre formas de se viver, seu patrimônio natural, cultural, sua história, desmandos, sucessos e dores. Por esta razão, recorremos a um texto muito bonito, do Murilo Carvalho, que foi publicado no livro de fotografias Baixo São Francisco, em 1993, com as imagens do fotógrafo sergipano José Caldas.

De 1993 para cá, os anos passaram, claro, e diversas colocações do colega Murilo merecem algumas observações nossas. Atenção: são comentários apenas para efeitos de comparação e reflexão sobre as mudanças que esta região sofreu. Uma boa parte, no aspecto socioambiental e econômico, irreversível, para pior.

Ainda assim, neste século 21 engrenado, acreditamos que este texto, até o momento, é um dos melhores já escritos como apresentação deste rio de baixo.

O Baixo São Francisco 
Murilo Carvalho

A descoberta e o povoamento dos grandes rios da América sempre se deram a partir do encontro de suas águas com o mar. O início da colonização tornou-se mais fácil e seguro quanto os grandes aventureiros ingleses, franceses, espanhóis, e portugueses decidiram utilizar os rios como estradas de penetração. Assim aconteceu com os rios São Lourenço e Mackenzie, no Canadá, como o Hudson e o Mississippi, nos Estados Unidos, como o rio grande no México, como o Amazonas e o São Francisco no Brasil, como o rio da prata entre o Uruguai e a Argentina. E justamente na foz desses rios é que, quase sempre, foram fundadas algumas das grandes cidades da América, como Quebec, Nova York, Nova Orleans, Belém do Pará e Buenos Aires.

Mas na foz do rio São Francisco a história foi bem diferente. Ali, ainda hoje, não existe nenhuma grande cidade, e a vasta paisagem se mantém bem semelhante à que foi encontrada  ainda em 1501 pelo navegador Américo Vespúcio, o mesmo que emprestou seu nome ao grande continente americano (nota 01). E isso ocorreu, certamente, porque o São Francisco deságua diretamente no mar alto, numa costa lisa, sem uma baía de águas profundas, capaz de proteger as embarcações. Além disso, a própria barra do rio, rasa e arenosa, impede a entrada de barcos de calado fundo, próprios para navegar no mar.

No início do século 21, apesar da já grande degradação, a visão da foz ainda era magnífica. Acervo Canoa de Tolda | Imagem via Hering/Farol da Foz

A paisagem, ali, é muito bonita: as águas limpas do rio São Francisco correm mansas entre dunas e coqueiros. Pequenas ilhas de terras altas, cobertas de mato e palmeiras, abrem clareiras para o plantio de feijão e roças de arroz. Praias de areia clara abrigam cabanas de pescadores, e de quando em quanto os manguezais cortam as margens do rio, como imensos criadouros de peixe, camarões, ostras, mariscos e caranguejos (nota 02). Barcos pesqueiros, pouco mais do que canoas toscas, com suas velas triangulares de cores vivas cortam as águas calmas, carregados de frutas, potes de produtos industrializados e passageiros. Um forte cheiro de maresia percorre o leito do rio, penetrando terra adentro, levado pelo vento, e chega esmo a cidades e povoados distantes , como Piranhas, já na boca da caatinga.

Nas cidades maiores da região, como Penedo, Neópolis, Porto Real do colégio e Propriá, feiras permanentes, onde se abastecem os moradores ribeirinhos e de muitas outras cidades e vilarejos, estão sempre repletas de frutas e peixes. Bandos de crianças chapinham nas margens rasas, e as lavadeiras, com seus panos brancos amarrados na cabeça, ensaboam as roupas e cantam. Nas sombras das árvores, beirando o rio, velhos pescadores remendam redes, consertam bóias, pintam faixas coloridas em barcos estreitos. Um cenário tranqüilo e claro, com muita luz, certamente ainda muito próximo do que foi durante os primeiros anos da colonização. E bem semelhante ao descrito, nos últimos séculos, por viajantes que ali passaram, como o aventureiro inglês Richard Burton, o botânico, também inglês, George Gardner e o alemão Robert Avé-Lallemant.

Burton, o mesmo que desvendou os mistérios do coração da África Negra e foi o grande arabista ocidental, tradutor do clássico livro As Mil e uma Noites, percorreu o rio São Francisco numa canoa, desde perto de suas nascentes, em Minas Gerais, e fez um relato emocionado de sua experiência.
George Gardner, que esteve trabalhando no Brasil de 1836 a 1841, passou quase dois meses na região e deixou um relatório bastante completo a respeito da vegetação, dos animais e dos tipos humanos do Baixo São Francisco. Aliás, Gardner viveu uma estranha aventura ali. Subindo de canoa o rio, a partir de Penedo, foi atirado por uma tempestade às praias da ilha de São Pedro. Tomado de febre, acabou permanecendo na ilha por duas semanas, vivendo numa cabana de pescadores e sendo cuidado pelas velhas curandeiras do lugar. Em sua narrativa afirma que, apesar da imensa pobreza e falta de recursos do lugar, foi bem tratado com remédios locais – à base de ervas – e pôde assim recobrar a saúde e retornar à “civilização”.

Mas talvez a descrição mais acurada desta região tenha sido feita por Robert Avé-Lallemant. Um trecho de seu livro Viagens pelas províncias da Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe, editado em 1859, parece descrever a paisagem do Baixo São Francisco que se vê ainda hoje, percorrendo de barco as águas do grande rio.

“Meu barco, cerca de meio-dia, abriu também suas asas e voou, gracioso e veloz, rio acima, em cujas margens iam se desenrolando cenários simples e magníficos. Na larga curva, logo a noroeste de Penedo, aparece primeiro a pequena Boacica, com uma bonita capela no cimo de uma colina e mais adiante, na margem plana do lado direito, a de Sergipe, surge entre a verdura a pequena povoação de Nossa Senhora da Saúde, mais um grupo de casas espalhadas do que propriamente uma aldeia. Nas margens, e mais freqüentemente ainda nas ilhas verdes inteiramente planas, pastam cavalos e bovinos… Vêem-se aí pequenos arrozais, aparentemente no meio da água, sobretudo nas calmas enseadas do rio, como pequenos lagos muitas vezes ligados ao rio apenas por uma estreita entrada. Às margens dessas enseadas, a maior parte das vezes, vê-se um casal, no meio das várzeas verdes, com pequenos rebanhos de bovinos; tudo parece pobre, humilde e, contudo, ameno e aprazível.”

Aprazível – talvez seja mesmo esta a melhor palavra para descrever a região do Baixo São Francisco. O rio é profundo e bastante calmo (nota 03). As chuvas são regulares, o clima é ameno o ano todo, há abundância de peixes, o solo é fértil e produz muito bem cereais, frutas e cana-de-açúcar .

A história deste trecho do rio São Francisco tem uma profunda ligação com boa parte  da historia do Nordeste. Foi por aqui que se tentaram algumas das primeiras penetrações do continente desconhecido que os portugueses haviam encontrado em 1500. Foi em Penedo que os holandeses criaram um poderoso forte, numa tentativa de controlar o território que haviam ocupado a partir de Recife e para impedir a chegada de reforços portugueses vindos da Bahia – capital da colônia. Foi a partir dali, subindo o rio, que os aventureiros portugueses e mestiços estabeleceram os currais de gado, em pontos distantes do sertão, ao longo das margens, até penetrarem em Minas Gerais e estabelecerem uma ligação do litoral com as terras de ouro e diamante. (nota 04)

A foz do São Francisco, próximo a Piaçabuçu e a Brejo Grande, que ainda hoje permanece deserta e limpa, foi avistada pela primeira vez apenas um ano depois da curta estada de Pedro Álvares Cabral no sul da Bahia. Apenas informado pela carta de Pero Vaz de Caminha, o governo português enviou três naus, comandadas por João da Nova, trazendo como piloto principal o genovês Américo Vespúcio, para reconhecer e identificar a nova terra. Na manhã de 4 de outubro de 1501, Vespúcio fundeou uma das naus diante da foz do grande rio. E – segundo as anotações de bordo – resolveu denominar o rio de São Francisco porque aquele dia era dedicado a São Francisco de Borja.

O reconhecimento do rio demorou para acontecer. Foi apenas durante o governo de Luiz Brito de Almeida, segundo governador da Capitania de Pernambuco, que um morador de Porto Seguro, Sebastião Álvares, foi enviado para explorar o rio. Nessa altura já havia moradores na região da foz, mas ninguém ainda se arriscara a subir o rio, com receio das aldeias de tupinambás que se espalhavam pelas margens e ilhas. Seu grupo de 20 homens não chegou sequer às grandes cachoeiras: foram todos massacrados. Mais tarde, outra entrada, comandada por João Coelho de Sousa, avançou pelo menos 600 quilômetros acima de Paulo Afonso, chegando onde é, atualmente, Ibotirama, na Bahia.

As cercas de pedra: testemunhas das primeiras ocupações europeias. Imagem | Canoa de Tolda

A colonização só começou mesmo depois da chegada de Tomé de Souza, em março de 1549, para assumir o cargo de Governador Geral da Colônia. Veio com ele Garcia d’Ávila, uma espécie de precursor dos bandeirantes e que iria, ao longo dos anos, penetrar fundo nos sertões do São Francisco. Até essa época o São Francisco era um mistério para os colonizadores que iam instalando ao longo de margens – ali próximo ao litoral – engenhos de açúcar e pequenas criações de gado. No tempo da seca o rio sempre estava cheio, provocando enormes inundações. Quando as chuvas começavam de verdade no litoral, o rio vinha com pouca água. Ninguém atinava bem com as razões desse fenômeno, e foi somente depois de se conhecer todo o curso do rio é que o mistério começou a se desfazer. A cabeceira e principais afluentes do São Francisco estão tão distantes do litoral que possuem um regime de chuvas diferente, provocando essa aparente contradição. Indiferente a esses mistérios, Garcia d’Ávila traçou seu plano de ocupação das terras que margeiam o grande rio, a partir da necessidade de produzir a carne para alimentar as populações da região dos canaviais, que cresciam rapidamente graças aos incentivos à produção do açúcar. Comprava grande número de animais que haviam chegado pelas caravelas e depois se multiplicado nas fazendas litorâneas e subia com eles o rio São Francisco. Escolhia um ponto que lhe parecesse bom e desembarcava 10 novilhas, um touro, uma égua, um cavalo e construía um curral, que era entregue aos cuidados de um casal de escravos. Poucos anos depois o São Francisco – também chamado o rio dos Currais – abastecia de carne, couro e outros produtos vasta porção do litoral do Nordeste. (nota 04)

Um século, mais tarde o rio São Francisco tornou–se a grande via de abastecimento das populações que atravessaram a serra da Mantiqueira, saindo de São Paulo e do Rio de Janeiro para trabalhar nas minas de ouro e diamantes na Capitania de Minas Gerais. E se consolidou como o rio da unidade nacional.

Para chegar ali, ao oceano Atlântico, na divisa de Alagoas e Sergipe, o rio São Francisco percorre um longo caminho. São 3.161 quilômetros, desde sua nascente no chapadão da Zagaia, no alto da serra da canastra, no sudoeste de Minas Gerais, até o mar. E ao longo de todo esse percurso – o Velho Chico – como é carinhosamente tratado pela população ribeirinha, sofre uma constante mudança de fisionomia. No início de sua descida para o mar é estreito e segue por um leito pedregoso, escondendo diamantes em suas margens profundas e arenosas. É chamado neste trecho de Alto São Francisco. Em suas águas quase não há peixes, e a navegação só é praticável por pequenas canoas, uma vez que o leito do rio é permanentemente cortado por rochas e travessões que formam extensas corredeiras.

Após percorrer cerca de 900 quilômetros, chega a Pirapora, já no alto sertão mineiro, onde forma uma larga cachoeira, e inaugura uma outra fase, uma outra face. Torna-se calmo, bem mais profundo, pois começa a receber as águas de afluentes maiores, como o rio das Velhas, e logo depois do Urucuia e de muitos outros rios vindos tanto das montanhas a leste, quanto das chapadas a oeste. A partir dali, o São Francisco já permite a navegação de barcos maiores e chatas  de transporte por cerca de 1.300 quilômetros, até a divisa da Bahia com Pernambuco, onde está situada a barragem de Sobradinho. Este é o trecho chamado de Médio São Francisco e corta os vastos sertões de Minas Gerais, Bahia e Pernambuco.

A partir da barragem de Sobradinho, próximo a Juazeiro, na Bahia e Petrolina, em Pernambuco, o rio ganha sua terceira cara: as águas passam a correr mais rapidamente, entre cachoeiras, panelões e saltos, por cerca de 400 quilômetros, até precipitar-se pelos paredões de granito da cachoeira de Paulo Afonso. Este trecho é denominado Submédio São Francisco. Depois torna-se calmo outra vez, seguindo manso e profundo para o mar,  formando uma paisagem colorida e fértil, um novo rosto para este rio de muitas faces: o Baixo São Francisco, por onde começou seu povoamento.

Farol do Cabeço. Imagem | Canoa de Tolda

Curiosamente, da mesma forma que muda a paisagem ao longo do percurso do São Francisco, mudam também os habitantes de suas margens. No alto São Francisco o homem pouco tem a ver com o rio, pois ele não tem ali grande importância econômica. Suas águas não são usadas na irrigação, como em outras regiões, já que chove bastante o ano todo. Pedras e corredeiras impedem a navegação. A pesca comercial é incipiente, pois o rio, ali, não possui volume para abrigar grandes cardumes. Por tudo isso, esses habitantes não criaram qualquer identidade mais marcante em relação ao rio.

Pirapora é o marco dessa mudança cultural e sociológica. Depois da cachoeira, começa o trecho navegável, os cardumes de surubins, piabas, pintados, dourados são grandes, e pescar é uma profissão. Os remeiros e canoeiros – que até alguns anos atrás eram figuras fundamentais daquela paisagem – criaram uma cultura própria, com hábitos, lendas, costumes e tradições específicas. Figuras míticas como o caboclo d’água, que habita o fundo do rio e castiga os maus pescadores, aqueles que são cruéis com pequenos animais ribeirinhos, provocando grandes ventanias e redemoinhos no rio, capaz de virar embarcações, fazem parte de um imaginário muito rico. Há também a Mãe D’água, o cavalo D’água e, especialmente, o “Minhocão”, um imenso verme que provoca profundos buracos nas margens – uma explicação mitológica para a erosão que destrói os barrancos, derruba a mata ciliar e assoreia o rio.

Outro hábito antigo que ainda permanece entre os barqueiros do São Francisco é a cantoria. Navegando lentamente pelo rio, costumam cantar em versos semelhantes ao repente nordestino os principais acontecimentos que presenciam no dia-a-dia. Cada cidade tem seu verso, numa definição quase sempre cômica. Esta cantiga, das mais tradicionais, era uma espécie de hino dos barqueiros, que diariamente percorriam as águas do grande rio:

Juazeiro da lordeza
Petrolina dos Missais
Santana do cascalho
Casa Nova da Carestia
Remanso da valentia.
Pilão Arcado da desgraça
Xique-xique dos “bundões”
Icatu, cachaça podre
Cidade da Barra dos Barões.
Januária, carreira grande
Corrente, meia carreira
Bate o prego em Santa Rita
caga mole em Barreira,
São Francisco da arrelia
São Romão da feitiçaria,
Pirapora da alegria.

Procissões fluviais para vários santos padroeiros, como Bom Jesus da Lapa, Bom Jesus dos Navegantes, fazem parte de uma tradição de mais de 400 anos. Foi também nesta parte do rio que surgiram as carrancas – figuras mitológicas esculpidas em madeira e que eram colocadas nas proas dos barcos, para espantar os estranhos fantasmas que vivem nos escuros meandros do São Francisco e especialmente na imaginação de todo ribeirinho.

As derradeiras lagoas de arroz em Brejo Grande, SE. Imagem | Canoa de Tolda

Ao longo de todo este trecho as cheias periódicas permitem o cultivo das margens e das ilhas, logo depois que as águas baixam, deixando-as ricas em humos. A região produziu ainda um outro tipo de identificação: o cerrado, que se transforma em caatinga árida, torna os homens mais dependentes do rio, que o utilizam como meio de transporte e como uma das poucas fontes de água para criação de animais e plantio irrigado.

Esse perfil é bastante semelhante ao dos Submédio São Francisco, onde barqueiros e remeiros não tiveram papel preponderante na formação da cultura regional (nota 05), mas a aridez do solo de caatinga é igual e mantém os agricultores e criadores ligados ao rio. É também a terra dos índios Pancararé e Pancararu, que ainda sobrevivem em pequenas aldeias ao longo das margens do rio ou pouco adentro, na chapada seca do Raso da Catarina, tocados pelos colonizadores há mais de 300 anos das terras férteis de beira-mar.

No Baixo São Francisco a população tem um outro espírito: é mais aberta, fala mais alto, ri muito mais que o povo do sertão. Sua característica física é também um pouco diferente daquela dos sertanejos, que são muito mais uma mistura de índios e brancos, com pouca influência da raça negra. Aqui o negro teve uma participação maior no processo de miscigenação, e sua cultura se entranhou mais entre a população. Até mesmo as festas tradicionais, que têm no rio um tema constante, são permeadas pela cultura negra e são semelhantes, em muitos aspectos, às manifestações culturais do litoral baiano. Velhas tradições, como o reisado e a chegança – tipicamente de inspiração negra -, ainda são mantidas nas cidades mais antigas como Penedo e Porto Real do Colégio. Mas as festas religiosas, de origem européia, como a de Bom Jesus dos Navegantes, é que permanecem com mais força na tradição de seu povo. Barcos enfeitados, muita cor e muita música tomam conta das margens do rio em dias de festa e procissão. Além disso, existem ainda outros movimentos culturais interessantes, de origem histórica, como as lutas dos guerreiros que relembram embates entre brancos e índios, com ecos da luta dos portugueses contra a ocupação holandesa.

As lavadeiras – presença constante ao longo de quase todo o rio – aqui se multiplicam em sua faina, pois a maioria das vilas e pequenas cidades não possui ainda sistemas de água adequados. Junto com os barqueiros e os bandos de crianças que fazem do rio seu principal lazer, elas mantêm um ar antigo nas margens calmas do grande rio. O mesmo ar que os casarios coloniais de Piranhas – com seus enormes telhados – e os sobrados ricos de Penedo parecem prolongar através dos tempos. Região de colonização antiga, rica em chuvas, fértil, refrescada pelos ventos do mar, aqui a agricultura obedece a outros critérios: canaviais extensos, arroz irrigado nas terras baixas e milharais. A pesca tornou-se novamente uma profissão, e a proximidade do mar dá aos seus habitantes um temperamento bem diferente do dos sertanejos de rio acima. As feiras são mais barulhentas e alegres, os barcos já têm velas – coisa que não ocorre em nenhum outro ponto do rio (nota 06).

Aliás, uma das principais características da maioria das embarcações de pesca do Baixo São Francisco são as velas triangulares, uma tradição nas naus portuguesas mais antigas. Em geral, utilizam-se duas velas triangulares, que se abrem para os lados e conseguem imprimir grande velocidade aos barcos, quando o vento  sopra do mar e é necessário enfrentar a forte correnteza do rio. As velas quadradas, mais primitivas, também são utilizadas por canoas e barcos de pequeno porte. Mas quadradas ou triangulares, essas velas têm uma característica comum: são feitas com panos de cores vivas e muitas vezes da mesma cor do casco da canoa, o que dá um tom ainda  mais alegre e festivo aos pequenos cais que se espalham nas beiras das cidades ribeirinhas (nota 07). Os pescadores, aqui, costumam ter suas canoas preparadas para pescar tanto no rio como no mar. Alguns barcos chegam mesmo a ser híbridos: possuem uma quilha maior do que seria necessário para navegar apenas no rio, mas ainda pequena para navegação exclusiva no mar. Esses barcos, assim equipados, podem ultrapassar as águas rasas da barra e conseguem equilíbrio suficiente para se aventurar no mar, atrás de peixes maiores.

A criatividade na construção de embarcações é uma característica de pescadores de todo o rio São Francisco. Mas, na região da foz, a construção de canoas é uma indústria já secular (nota 08).

As chatas, como as canoas de tolda, completavam a paisagem. Imagem | Canoa de Tolda

O botânico George Gardner, no seu livro Viagem ao Interior do Brasil, faz uma descrição acurada de um tipo de canoa que ainda hoje é bastante comum em todas as vilas e cidades do Baixo São Francisco:

“A canoa em que embarquei era bastante grande, com cerca de 40 pés de comprimento por quatro de largura. É raro que uma só árvore tenha dimensão suficiente para fazer uma canoa desse tamanho. Mas quando uma não basta, escava-se a maior que se puder encontrar, serrando-a em duas, da popa a proa, e dando-se a largura necessária com o acréscimo de uma ou mais pranchas entre as duas metades. Uma das extremidades era coberta, numa largura de 10 pés, com folhas de coqueiro, como o teto de uma casa, e assim tanto servia de abrigo contra o sol, durante o dia, como cabina de dormir à noite. Havia apenas um mastro que levava duas grandes velas triangulares, de algodão grosso, fabricado no país, e que se abriam de cada lado por meio de uma vara comprida. A brisa do mar chega geralmente a Penedo por volta do meio-dia, soprando rio acima. E com as velas abertas à maneira de asas, sobe-se com grande rapidez, apesar da forte correnteza contrária. Como é perigoso navegar em canoas pequenas quando o rio está cheio, amarram-se duas, lado a lado, formando, assim unidas, um outro tipo de embarcação que se chama ajoujo.”

Apesar dessa variedade de tipos de embarcação, muitas delas capazes de penetrar no mar pela barra, é mesmo a pesca do rio que traz o maior volume de peixes. Ali abundam o dourado, o trairão, o pirá e outros peixes que sobem o rio, vindos do mar. A pescaria é quase sempre feita no amanhecer e no escurecer, dependendo da época do ano, da altura das águas do rio, e mesmo da fase da lua. Na época da piracema muitas espécies de peixes marinhos sobem o rio para desovar acima das corredeiras, já perto dos paredões de Paulo Afonso. Nesse período de subida a pesca é interrompida, pois os pescadores, desde tempos imemoriais, sabem que se capturarem os peixes antes da desova estarão comprometendo suas futuras pescarias. Assim, depois que a desova se completa e os peixes adultos começam a retornar para o mar ou para as águas mornas da costa é que se inicia de novo a pesca, mantendo-se sempre um equilíbrio saudável entre o número de peixes existentes e o volume que pode ser capturado.

Há alguns anos houve, em boa parte da região, uma intensificação da pesca, com pequenos empresários desprezando a experiência e sabedoria dos antigos pescadores, praticando uma pesca predatória que chegou a ameaçar seriamente a atividade. Mas foi por pouco tempo: a captura a qualquer tempo, e o ritmo da pescaria voltou ao normal. (nota 09)

Outra atividade econômica – mais pobre, mais dura e menos gratificante do que a pesca – é praticada pelos catadores de caranguejos. São centenas de homens, mulheres e crianças que diariamente se afundam nos lodaçais do mangues, próximo à foz, para retirar o guaiamum, o sá, o aratu. (nota 10)

A terceira e mais importante atividade econômica do Baixo São Francisco é a agricultura que, desde o início da colonização, foi praticada nas terras baixas das ilhas e nas margens inundáveis. As terras mais altas eram pouco utilizadas, até que projetos de irrigação começaram a ser implantados em toda a região, nos últimos 15 anos. Áreas de difícil cultivo, por sua proximidade com a caatinga, tornaram-se férteis produtoras de arroz, tomate, milho e feijão. Os projetos de irrigação de Traipu, Gararu e Marituba, por exemplo – com seus exóticos nomes indígenas – tornaram-se pólos importantes de produtos agrícola, com a utilização de modernas tecnologias, que já começam mesmo a transformar a imagem de pobreza ao longo de quase todo o vale do São Francisco. (nota 11)

Em Brejo Grande, SE, secaram as derradeiras colheitas de arroz. Imagem | Canoa de Tolda.

Mas foram mesmo as antigas plantações de arroz e da cana-de-açúcar ao lado da pecuária extensiva que marcaram mais fundamente os hábitos, costumes e tradições da região que se estende pelas duas margens do São Francisco. Embora plantadas próximas ao rio, as cidades como Penedo, porto Real do Colégio, Neópolis, Propriá, Porto da Folha e Piranhas têm sua economia fundada basicamente na agricultura e na pecuária. Por isso, boa parte dos costumes dos moradores de todo o vale do Baixo São Francisco vem das mesmas raízes de onde brotou a cultura litorânea nordestina. Com uma diferença: ali o sertão não é – como na Bahia ou mesmo em Pernambuco – uma realidade distante. Poucas horas de viagem rio acima e o sertão, com seus cactos, suas Faveleiras, sua terra ressecada e pedregosa, já envolve as margens de ambos os lados.

Assim, a economia do Baixo São Francisco sempre foi uma mistura das economias formadoras do Nordeste. Próximo ao litoral, engenhos de açúcar, com plantações extensivas e uma grande população de trabalhadores volantes contratados para a queima e o corte da cana. Um pouco para dentro do continente, o sertão e sua população de vaqueiros e agricultores pobres. Ali a seca já é uma constante, e a agricultura quase só de subsistência.

Ao longo do litoral, numa faixa que vai até cerca de 100 quilômetros rio acima, a paisagem hoje é dominada pelos canaviais. Implantados principalmente em Pernambuco e Paraíba, na época da colonização, os canaviais desceram rumo ao sul, ocupando quase todas as terras litorâneas agricultáveis de Alagoas, atravessaram o São Francisco e penetraram bastante também em Sergipe. E ali, em todo o vale do rio houve uma transformação acentuada no dia-a-dia da população. Até o final do século passado, em toda a região litorânea predominavam as fazendas de gados e de cultivo dos alimentos básicos, como o arroz, o feijão, a mandioca e o milho. Pequenas propriedades se espalhavam em torno de vilas rurais, bem parecidas com as que ainda hoje existem pelo sertão nordestino.  A chegada das usinas com suas vastas plantações de cana-de-açúcar transformou a paisagem e introduziu mudanças na própria maneira de viver da população. Os pequenos agricultores quase que desapareceram, vendendo suas terras ou mesmo arrendando-as para o plantio da cana. Boa parte dessa população pobre passou a trabalhar nas usinas, adquirindo hábitos semelhantes aos de trabalhadores urbanos.

Dessa forma, muitos dos costumes, das festas das próprias manifestações culturais começaram também a se transformar. Os folguedos como o bumba-meu-boi, os Reisados e o Guerreiros perderam parte de sua importância, ficando mais altas, onde o canavial não chegou. É evidente que ainda há uma cultura popular de resistência, até mesmo nos bairros rurais das cidades, que mantém viva as festas tradicionais. Mas, de certa forma, o novo arranjo econômico e social fez com que essas festas e outras atividades comunitárias, como os mutirões, as serenatas, os bailes de rua perdessem muito em importância, ficando restritas a pequenos grupos. Apenas nos últimos anos, numa espécie de reencontro com suas raízes, é que parte da população, principalmente os mais jovens, busca reviver, de alguma forma, essas antigas manifestações comunitárias.

Outro fenômeno que contribuiu para modificar ainda mais a velha cultura rural litorânea, depois do aumento dos canaviais, foi a necessidade de mais mão-de-obra para o corte da cana. Agricultores do sertão, viventes da caatinga, lutando permanentemente contra a seca, encontraram nas usinas trabalho temporário nas épocas de pico do corte de cana. E a cada ano passaram a descer do sertão para trabalhar quatro ou cinco meses nas plantações, principalmente durante as épocas de seca. Terminado o corte da cana, retornam aos seus sítios e povoados sertanejos.

Por causa dessas transformações sócio-econômicas, toda a região litorânea do Baixo São Francisco adquiriu os mesmo hábitos culturais das antigas comunidades rurais. Os próprios pescadores, até mesmo de aldeias como a do Cabeço, junto à foz do rio, na margem sergipana, mantém suas pequenas roças de mandioca, feijão, banana e milho. Indícios claros desse modo de vida pode-se notar nos hábitos alimentares da população. Ao contrário do que pode imaginar, apesar da razoável indústria da pesca, o peixe quase não faz parte das refeições da população. A base do cardápio diário é mesmo o feijão, a farinha, o arroz e a carne de boi. A carne-de-sol, típica do sertão, pode ser encontrada em todas as feiras, até mesmo das pequenas vilas. O peixe é alimento esporádico, sendo consumido em maior quantidade apenas pelos pescadores e famílias mais pobres, que não têm recursos para comprar a carne.

Mas o encantamento da região litorânea do Baixo São Francisco permanece vivo. Essa vasta mistura de culturas, raças e costumes reforçou um estilo alegre de comportamento, bem diferente do que se nota pelo sertão, rio acima. Um dia de folguedo é uma experiência fascinante.

Guerreiros no Natal de Piaçabuçu, AL. Imagem | Canoa de Tolda.

Os Guerreiros, uma manifestação típica da região, é uma boa mostra do sincretismo cultural que se formou na área litorânea do Baixo São Francisco. Num domingo de sol, nos primeiros dias de janeiro, próximo ao dia de Reis, é possível encontrar esses grupos de teatro popular e dança em quase todas as comunidades da região. Ele é semelhante ao reisado – comum a quase todo o Brasil – mas mistura elementos mais complexos, como o bumba-meu-boi, que em outras áreas do Nordeste é um folguedo separado e ainda apresenta um grupo de índios guerreiros. Misto de teatro e dança, os Guerreiros que descem as ladeiras pedregosas da periferia de Penedo têm como figurantes o rei e a rainha dos guerreiros, uma rainha da nação (que relembram as rainhas negras das aldeias africanas), mestre, contramestre, embaixadores de vários reinos, o índio Peri, a lira, um general, dois palhaços, uma sereia e dois Mateus. Acompanham o grupo, ainda, Pernambuco e na Paraíba. Como se vê, uma enorme miscelânea cultural. Os guerreiros, vestidos com roupas coloridas, muitas fitas de cetim colocadas em incríveis chapéus trabalhados, semelhantes a torres de catedrais, interpretam pequenos quadros isolados, que acabam compondo um vasto retrato da própria história da região e de certa forma de todo o nordeste. Nos Guerreiros reúnem-se os elementos básicos formadores da nacionalidade brasileira: o índio, o branco e o negro. E de cada um deles, os mitos, os sonhos e, principalmente, um profundo desejo de liberdade. Eventualmente, um ou outro pequeno tambor e até mesmo violas e violões.

As histórias contadas são ingênuas, mas retratam cenas de um passado mais ou menos distante. Ali assiste-se à morte e à ressurreição da lira, um elemento musical, escuta-se o canto da sereia, a luta do índio Peri contra os soldados do general, sua prisão e depois seu perdão, por interferência dos embaixadores. Mestre e contramestre cuidam do canto e da marcação das danças. Os palhaços encantam as crianças, mostrando que tudo é mesmo uma festa, e as figuras misteriosas dos Mateus mascarados provocam a multidão. No final surge o boi, chifrando, atacando, investindo sobre o público, forçando uma participação ainda mais intensa da platéia, que durante todo o folguedo confunde-se e mistura-se com os guerreiros.

Essa alegria, esse quase que permanente clima de festa que se sente em quase toda a alegria, litorânea do Baixo São Francisco ficam para trás quando se sobe o rio em direção ao sertão. As águas calmas e a profusão de ilhas baixas com praias de areia branca desaparecem logo acima de Traipu. Daí para a frente, o rio corre entre paredões altos, e em suas margens já nasce a caatinga seca de todo o sertão nordestino. Os cactos, como o mandacaru, o facheiro, a coroa-de-frade, o xique-xique tornam-se comuns, substituindo os manguezais e as vastas ilhas de coqueiros. E essa vegetação seca, espinhenta, de pequenos arbustos de folhas coriáceas e árvores mirradas de troncos retorcidos mostra o início de uma outra civilização. Aqui a gente é mais contida, menos expansiva. O rio, emparedado entre altas penhas de granito, perde muito de sua importância.

Poucas cidades vilas, como Piranhas, por exemplos, ainda mantêm algum contato íntimo com o rio São Francisco. O que domina mesmo é a cultura sertaneja. Aqui ainda vivem na memória das pessoas as figuras lendárias de cangaceiros, como Lampião, de místicos como Antônio Conselheiro, de empresários combativos como Delmiro Gouveia. Piranhas, na margem alagoana e Porto Da Folha, do lado de Sergipe, são os principais pontos de contato entre o sertão e a região do Baixo São Francisco.

Piranhas é uma cidade antiga e pobre, mas suas casas ainda guardam o colorido das paredes e os enormes telhados coloniais. As ruas, calçadas de pedras irregulares, mantêm a memória de muitas lutas e confrontos entre coronéis e jagunços. Porto da Folha, mais pobre ainda, talvez até mais sertaneja, plantada um pouco abaixo, do outro lado do rio, é da mesma forma que Piranhas, boca do sertão. E foi ali, entre essas duas cidades, que se desenrolou o alto final de um dos mais violentos dramas do sertão nordestino: a morte e a destruição do banco de cangaceiros de Lampião. (nota 12)

No alto sertão, a sombra da craibeira é estaleiro dos mestres. Imagem | Canoa de Tolda.

A história do cangaço no interior do Nordeste é semelhante à história de outros grupos de bandidos que povoam a memória de quase todos os povos. Em momentos de crise política e social, grupos armados, chefiados por líderes carismáticos, buscam fazer justiça com as próprias mãos, assumem poderes de vida e morte nos povoados e vilas abandonados e distantes. Na maioria das vezes passam a apoiar e proteger políticos e proprietários de terra em conflito com outros proprietários e se tornam bandos ferozes, incontroláveis.

Esses bandos começaram a surgir no Nordeste em meados do Século passado, com o nome de cangaceiros. Suas roupas – uma espécie de rústico uniforme, com chapéus de couro de abas levantadas e decorados com estrelas e medalhas, largas cartucheiras trançadas no peito e polainas com alpercatas – tornaram-se símbolo de violência. Esses grupos de cangaceiros, como o liderado por Antônio Silvino, nos sertões de Pernambuco e da Bahia, acabavam criando uma espécie de organização militar e política, profundamente entranhada de religiosidade. E funcionava como uma espécie de estado ambulante, que distribuía justiça e violência pelo sertão, cobrando em troca alimento, dinheiros e poder. Lampião foi talvez o mais famoso e o mais violento desses chefes cangaceiros. Nascido em 1900, num povoado pobre de Pernambuco, Virgulino Ferreira da Silva buscou o cangaço ainda jovem, depois que seu pai fora assassinado. Desejoso de vingança, juntou-se a um pequeno bando de cangaceiros. Mas não demorou muito, sua coragem, sua capacidade de encontrar caminhos e esconderijos pela caatinga o transformaram em líder de um pequeno grupo. Perseguido pela polícia, conseguiu sobreviver com seu bando por mais de 20 anos, tornando-se cada vez mais agressivo e aguerrido. Seu profundo conhecimento da vida na caatinga e um natural instinto de guerrilheiro fez com que seu bando se tornasse o maior já visto no Nordeste, capaz de ocupar militarmente cidades de porte médio e até mesmo ameaçar cidades grandes como Mossoró, no Rio Grande do Norte. A extrema mobilidade de seu bando, subdividido em pequenos grupos, aliada à proteção de muitos fazendeiros, políticos e gente do povo, dificultou sua prisão pelas polícias estaduais.

Sua importância foi tão grande, que os governos da região decidiram criar uma polícia volante, que poderia atuar em vários estados e com as mesmas características de mobilidade dos cangaceiros. Foi um desses grupos que, finalmente, conseguiu matar Lampião e seu bando.
Mas ao lado dessa violência, a figura de Lampião chama atenção pela aura de romantismo que sempre o envolveu. Alto, magro, declarou-se apaixonado por uma moça sergipana, que se integrou ao seu bando como guerrilheira e tornou-se conhecida como Maria Bonita. Músicas e cantigas faziam parte do cotidiano do grupo, e algumas delas, como Mulher Rendeira, tornaram-se símbolo do cangaço. Os poetas populares, autores de pequenos livros de cordel, os cantadores de feiras – comuns em todo o sertão – se encarregaram de espalhar o nome de Lampião como um ser quase mitológico, um fazedor de justiça.

E foi bem ali, na boca do Sertão do São Francisco, que aconteceram alguns dos mais violentos combates entre os cangaceiros de Lampião e os soldados da volante. Piranhas chegou mesmo a ser ocupada por Lampião e tornou-se por algum tempo uma espécie de quartel general de seu bando. Foi dali, de Piranhas, por sinal, que na noite de 28 de julho de 1938 partiu o pelotão de soldados que iria travar a batalha final contra Lampião numa grota escarpada na fazenda dos Angicos, no município de Poço Redondo, do outro lado do rio São Francisco.

A canoa Rio Branco, atual Luzitânia, era transporte apreciado de Lampião e seu bando. Imagem | Canoa de Tolda.

Ainda hoje Piranhas e Angico guardam, como boa parte do sertão, a memória muito viva do Coronel Virgulino, o Lampião. Nas feiras de sábado ainda é bem comum encontrar os cantores do povo recitando verbos em que narram suas aventuras e sua morte ali tão próximo. Verbo como estes do poeta de cordel Antônio Teodoro dos Santos:

Ali vivia contente                                             
Junto a sua companheira;                              
À margem do São Francisco,
No pé duma cordilheira;
Tendo também a seu lado
Sua grande cabroeira.
 
Denomina-se Angicos
Essa pequena fazenda.
Onde foi de Lampião
A sua última contenda;
Ele ali fazia bailes
Jogava e botava venda.
 
Ali não faltava nada;
Era o palácio real;
Toda espécie de comida
De uso na capital;
Aguarnecida de guardas
Era a casa imperial.

Mas chegaram os soldados e a morte foi inevitável, como narra o poeta:
Fez um cerco bem seguro
Com boa metralhadora;
Nessa hora só livrava-o
A grande mão protetora
Mas oração deste mundo
Não livra dessa tesoura.
 
Morreu Maria Bonita
Também morreu Lampião
Pois tudo tem seu fim
Segundo diz o rifão
Morreu mais nove bandidos
E bem uns dez foragidos
Rumaram para o sertão.

Mas o sertão do Baixo São Francisco guarda ainda outras histórias surpreendentes. Não muito distante dali, subindo as escarpas da serra de Piranhas, por onde o São Francisco se precipita, formando a cachoeira de Paulo Afonso, fica o Raso da Catarina. É um enorme tabuleiro cortado por cânions profundos, sem água e com uma vegetação ainda mais seca. É talvez o único deserto brasileiro. E lá, nas bordas desse raso, onde Lampião e seus cangaceiros se escondiam, foi que aconteceu uma das maiores tragédias do sertão brasileiro e que influenciou muito toda esta região do Baixo São Francisco: a guerra de Canudos.

No sertão, os setembros trazem a florada das craibeiras. Imagem | Canoa de Tolda.

No final do século passado um místico, Antônio Conselheiro, passou a andar pelas vilas e povoados do sertão pregando uma religião reformada e confusa, prevendo um fim do mundo para breve e um juízo final apocalíptico. Rapidamente, naquela região miserável, com uma população castigada por anos de seca, onde a fome e a doenças grassavam, conseguiu juntar uma multidão de seguidores. Partiu, então para as margens do rio Vaza-Barris, nas beiradas do Raso da Catarina, onde fundou uma cidade: Monte Santo. Ali colocou em prática uma nova moral religiosa. Sua pregação monarquista, logo depois da proclamação da República, o fez parecer um contestador político. O governo federal resolveu prendê-lo. Mas não contava com a organização religiosa radical que se formara, transformada quase num exército de guerrilheiros. E foi necessário mesmo um exército para ocupar Monte Santo.

A tragédia foi inevitável: milhares de pessoas foram mortas e feridas e a cidade inteiramente destruída. Os sobreviventes se espalharam de novo pela caatinga e boa parte veio ocupar as terras secas de Propriá, Lagarto, Porto da Folha e Piranhas. E mesmo hoje em dia, passados cem anos dessa tragédia, as pessoas desse sertão falam da guerra de Canudos como um acontecimento quase presente. Uma espécie de cicatriz dolorida que ainda ajuda a compor a figura silenciosa do sertanejo. (nota 13)

Mas foi aqui, ainda, nesta paisagem do Baixo São Francisco, que brotou outra das mais surpreendentes histórias do Brasil: a construção da primeira usina hidrelétrica do Nordeste e a montagem de uma grande indústria de fios, nascida do sonho de um empresário cearense, Delmiro Gouveia.
Delmiro Gouveia nasceu em 1863. Filho de fazendeiro, perdeu o pai aos 5 anos, quando ele morreu lutando na guerra do Paraguai. Sem recursos, mudou-se com a mãe para Recife, que também morreu cedo, quando mal completara os 15 anos. Sem pai, sem mãe, o garoto vai à luta. Começa a trabalhar como bilheteiro nos trens da empresa concessionária do transporte urbano do Recife, a Maxambomba. Depois de algum tempo, é promovido a chefe de estação, no bairro Caxangá.

Parecia um destino traçado: um bom emprego para um rapaz órfão. Mas a vontade de comerciar, negociar, empreender falou mais alto. Devagar, aproximou-se dos compradores e vendedores de couros e entrou de corpo e alma no novo negócio. Prosperou tanto que uma grande empresa compradora norte-americana propõe que ele assuma sua filial brasileira, numa espécie de sociedade. Aceita a sociedade, viaja aos Estados Unidos, e rapidamente aprende novas técnicas de negociar e de empreender. Volta de Chicago fascinado com o grande mercado da cidade. E já bem capitalizado, inicia a construção do mercado do Derby, um bairro de Recife. Inicia também a construção da Usina Beltrão, que seria a maior produtora de açúcar do mundo.

Mas Delmiro Gouveia, tinha um temperamento  tempestuoso e acaba entrando numa grande briga política com comerciantes locais que temiam a concorrência do novo mercado modelo. O mercado é incendiado, e Delmiro vê-se obrigado a suspender seus negócios e partir para a Europa. Um ano depois volta com a cabeça ainda mais cheia de idéias e retoma suas empresas. Mas era mesmo um temperamento romântico: apaixona-se pela enteada do governador de Pernambuco, Sigismundo Gonçalves, seu inimigo político e vê-se então obrigado a fugir outra vez. Parte, assim, para o velho São Francisco, um rio que aprendera a amar em suas andanças  de negociante. Sobe pela foz, segue pela margem direita, até  se instalar um pouco acima de Piranhas, num lugarejo chamado Pedra, ponto final duma linha de trem.

O aventureiro começa a sonhar de novo. Nos seus passeios a cavalo segue até Paulo Afonso, e a grande cachoeira o deixa fascinado. Decide domá-la e construir ali uma usina hidrelétrica – então uma grande novidade no Brasil e a maioria dos países do mundo. Na verdade, a engenharia brasileira da época não dispunha de tecnologia para construir uma obra desse porte, e mesmo as indústrias nacionais não fabricavam as peças e motores necessários para a empreitada. Delmiro vai então à Inglaterra e encomenda todas as peças necessárias para a montagem da usina e manda vir junto uma completa fábrica de fios de algodão, capaz também de produzir linhas de costura.

Enquanto espera chegar o maquinário da usina e da fábrica, passa a comprar algodão e estocá-lo num armazém em Pedra. Assim que a usina é montada na Cova do Morcego, num dos braços da cachoeira  de Paulo Afonso, ele constrói também um sistema de distribuição de energia, e a pequena cidade de Pedra torna-se uma das primeiras do mundo a contar com luz elétrica em todas as suas casas e todas as suas ruas. Além da luz, aproveitou a força do rio para levar água encanada a toda a população de uma cidade do sertão acostumada a conviver com a seca e a falta d’água. Logo que chegam os equipamentos, inicia a montagem da usina e logo em seguida a da fábrica de linhas, e já começa uma revolução naquele sertão: organiza cursos de aprendizado industrial para centenas de trabalhadores, que até então só sabiam trabalhar como agricultores na caatinga. E a Cia. Agro Fabril Mercantil passou a ser um pólo de desenvolvimento para toda a região do Baixo São Francisco.

Mas a visão empresarial do sertanejo Delmiro Gouveia foi mais longe. Antecipando em mais de 50 anos as conquistas sociais dos operários brasileiros, montou vilas operárias, com boas casas, dotadas de toda infraestrutura e de um conforto excepcional para aquele início de século. Luz, água encanada, banheiros internos e jardins. Construiu ainda um hospital, clubes de dança, pistas de esportes e uma biblioteca recheada de romances e livros técnicos, para aprimorar os conhecimentos de seus trabalhadores que, em 1914, já somavam 1.100.

O sucesso foi rápido. Os carretéis de linha marca “Estrela” logo tomaram conta de todo o Nordeste, substituindo as caras linhas importadas da Europa. Em seguida um dos maiores fabricantes de linhas de costura do mundo, a firma inglesa Machine Cotton, fez-lhe uma proposta para comprar a fábrica de Pedra. Em vez de vendê-la, Delmiro retornou á Europa e comprou máquinas mais modernas e maiores, aumentando sua capacidade de produção. E trouxe também 2.000 teares, montando uma nova fábrica, desta vez para produzir brins, morins e riscados: tecidos largamente consumidos pela população sertaneja e fabricados com o algodão colhido na região.

Nas tardes do verão sertanejo, as caatingas se incendeiam de cores. Imagem | Canoa de Tolda.

Prontas as fábricas, Delmiro decide levar energia elétrica ás outras cidades da região. Como primeiro passo abre, por conta própria, cerca de 500 quilômetros de estradas de boa qualidade, ligando Pedra a outros municípios, onde desejava levar também suas idéias progressistas, associando-se a empresários locais.
Mas o sonho acabou na noite de 10 de outubro de 1917. Enquanto lia jornal na varanda de sua casa, Delmiro Gouveia foi morto com dois tiros. Os assassinos nunca foram descobertos.  As fábricas, em mão de herdeiros ainda muito jovens, foram finalmente vendidas para a Machine Cotton. Por razões de mercado internacional a empresa desativou as fábricas, demitiu os funcionários e destruiu quase todas as máquinas, paralisando inclusive a usina geradora de energia. A cidade de Pedra mudou de nome e chama-se hoje Delmiro Gouveia. Sua memória é preservada num pequeno museu – moderno, bonito, onde se pode conhecer de perto a saga industrial de um homem que viveu bem adiante de seu tempo, aplicando em suas empresas conceitos de gerenciamento que só há alguns anos passaram a se tornar comuns nos países industrializados.

Mas só passado do Baixo São Francisco deve histórias como esta. O presente traz uma grande preocupação aos moradores de todo o vale. A construção de um grande número de represas rio acima – Três Marias, Sobradinho, Itaparica e agora a de Xingó – mudou o comportamento do rio, reduzindo a disponibilidade de peixes, alterando o regime de cheias, e assim prejudicando o trabalho de pesca e mesmo o plantio nas margens férteis do rio. O grande volume de água que está sendo retirada do rio para projetos de irrigação e para o abastecimento de grandes cidades, como Aracaju, está tornando a lâmina d’água cada dia menor e o rio mais raso. Na maioria das cidades de beira- rio não há tratamento de esgotos, que são lançados diretamente no São Francisco. Por isso a poluição das águas já é bem visível e se não for controlada poderá acabar com a pesca profissional e mudar definitivamente o perfil social e econômico de toda a região. (nota 14)
Mas essa poluição ainda é pequena, diante dos problemas que já começam a surgir.

A construção de Xingó, alguns quilômetros acima de Piranha, pode mudar bastante a vazão do rio, especialmente em épocas de grande seca no sertão. O lago que irá forma Xingó é relativamente pequeno, já que a represa está sendo construída entre dois barracos profundos – quase um cânion. Assim, muitos ambientalistas temem que em ocasiões de pouca água não seja possível manter uma vazão adequada do rio, para que todos os projetos de irrigação existentes na região, além das cidades ribeirinhas possam continuar sendo abastecidos normalmente. Na verdade, a equação irrigação versus produção de energia está longe de ser resolvida no São Francisco e é talvez a maior preocupação dos engenheiros da Companhia de Desenvolvimento do vale do São Francisco. A questão é complexa: o regime de águas do São Francisco é bastante irregular, pois boa parte de suas águas vem de afluentes pequenos e no alto sertão costuma passar bom tempo sem chover. Assim, muitos desses afluentes permanecem secos vários meses por ano. Quando isso acontece, as várias grandes represas que já funcionam ao longo do rio – Três Marias, Sobradinho, Itaparica e agora Xingó – precisam permanecer cheias, para que continuem produzindo energia. Com isso a vazão de suas comportas é reduzida, em escada, fazendo com que o nível geral do rio baixe ainda mais. Essa situação já pode ser percebida principalmente no Médio São Francisco, logo depois de Sobradinho, numa região onde se concentram grandes projetos de irrigação. Ali, nas estações mais secas as águas do rio baixam tanto que muitas bombas grandes são obrigadas a parar de funcionar. Além disso, as águas do São Francisco, muito baixas, impedem a navegação, prejudicando profundamente o transporte de mercadorias. (nota 15)

Aliás, o que ocorreu com a navegação em todo o Médio São Francisco deveria ser um alerta para o que poderá acontecer nesta outra parte do rio. No final do século passado e início deste século, o movimento de cargas ao longo do rio era expressivo, e a Cia. De navegação do São Francisco, mais os barcos particulares, as grandes gaiolas, movimentavam milhares de toneladas todos os dias. A construção de grandes barragens, os projetos de irrigação e o assoreamento do rio causado pela destruição das matas ciliares praticamente extinguiram a navegação no rio. Todos os barcos grandes foram desativados e estão encalhados ao longo das margens. Restam apenas os comboios de chatas que transportam minérios e carvão, mas que só podem funcionar durante as épocas de cheia.
Essa situação ainda não é greve no Baixo São Francisco, mas após o fechamento da barragem de Xingó certamente as águas irão baixar ali também. Caso isso venha a ocorrer, deve entrar pelo rio, nas marés altas, uma quantidade maior de água salgada, modificando o ambiente onde vivem os cardumes de peixes e atrapalhando sua reprodução. Poderá haver, ainda, problemas nos projetos de irrigação mais próximos do mar, pois com a água salobra será impossível continuar plantando. (nota 16)

Nos manguezais da Parapuca, em Brejo Grande, SE, a barra da Faísca. Imagem | Canoa de Tolda

Outra questão grave, que ainda não está sendo cuidada, especialmente junto à foz, é a destruição dos manguezais de toda  a região são fundamentais para a reprodução dos peixes e de crustáceos. Ali também é uma espécie de reserva permanente de nutrientes para abastecer alevinos e filhotes de todas as espécies de peixes costeiros. A exemplo de outros manguezais, em outras regiões do país, a área do Brejo Grande, á margem direita da foz, já está sendo invadida por loteamento – muitas vezes clandestinos – que poderão, num futuro bem próximo, destruir completamente todo esse ecossistema. (nota 17)

Ainda há tempo de se resguardar  a  beleza e o encantamento desta região quase selvagem. Mas é preciso que toda a comunidade das cidades, das vilas, dos povoados se organizem contra qualquer tipo de predação. É preciso que o turismo seja encarado de outra forma, sem que os manguezais precisem ser destruídos para se abrir loteamentos, sem que os peixes desapareçam e que as dunas e coqueirais, as estreitas ilhas cobertas de verdura, as praias brancas e macias possam continuar vivas e limpas, como naquela distante manhã de outubro em que o navegador Américo Vespúcio batizou o grande rio de águas azuis: São Francisco.

Fonte:
“Baixo São Francisco” – Caldas, José e Carvalho, Murilo – Editora Desenho – 1993 © José Caldas  e Murilo Carvalho

Imagens:
via Rio de Baixo | Canoa de Tolda © 2018

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Veja abaixo, os nossos comentários:

Nota 01 – Em 2018, é grande e crescente o número de ocupações irregulares na região costeira da foz do São Francisco. sobretudo na margem sergipana, onde a região do canal da Parapuca (entre o continente, em Brejo Grande, e a ilha do Arambipe), vem sendo profundamente degradada. A banda alagoana, alvo de turismo de massa, ainda que com a implantação da APA Federal de Piaçabuçu – somente em 2011 foi finalizado o Plano de Manejo – ainda hoje sem qualquer controle de seu uso, corre o risco de desfiguração e comprometimento definitivo do patrimônio natural.

Nota 02 – O plantio de arroz, com o somatório das consequências das operações de Xingó ao já dramático quadro provocado por Sobradinho, hoje é menos do que insipiente e mantido por uns poucos pequenos produtores, em Brejo Grande e Ilha das Flores, em Sergipe, e Piaçabuçu em Alagoas. Os anteriores problemas de escoamento da pequena produção, encaminhada para atravessadores, e mesmo o mercado local não favorecerem a atividade que pode ser considerada muito próxima da extinção. Um exemplo: o arroz da merenda escolar, parboilizado, muitas vezes vem de produtores no sul do país, a 3000 km de distância. A partir do início de 2013, com o colapso do uso das águas do São Francisco agravado pela maior estiagem recente (que levou as operações de barramentos praticarem vazões regularizadas abaixo de 1.300 m³/s – em setembro de 2018 a regularização mantinha médias mínimas de 580 m³/s), que chega a 2018 com resultados socioambientais profundos, a elevação da salinidade da água no estuário inviabilizou praticamente qualquer atividade agrícola: mesmo a vegetação ripária nativa, como as aningas, produzindo margens peladas e de solo salgado. As antigas lagoas de arroz e manguezais foram violentamente ocupados por tanques dedicados à carcinicultura (criação de camarões).

A pesca também declinou a níveis que mereceriam toda a atenção tanto por parte dos pescadores como dos órgãos reguladores (como o Ministério da Aquicultura e Pesca) e ambientais. Ocorre uma sobrepesca intensiva, camuflada (quando os pescadores apresentam resultados de uma “boa pesca”) pela mecanização (uso de motores de rabetas, que provocaram o desaparecimento da navegação tradicional a vela) e uso de métodos e aparatos de pesca predatórios: pesca de “batida”, pesca com veneno, explosivos, pesca com arpão, uso de redes enormes, com panos duplos, desrespeito ao período de defeso não só de peixes mas de crustáceos e moluscos.

A questão dos caranguejos permanece sem solução e encaminhamentos de procedimentos adequados. Desde a mortandade ocorrida em final dos anos 90, nunca mais a pesca – extremamente intensiva, para atender aos mercados de Aracaju, Maceió e Salvador- do caranguejo uçá se recuperou. O mesmo vale para o guaiamum, hoje pouco visível nas margens dos rios. São duas espécies que não têm a devida proteção e que rapidamente não serão mais vistas.

A regularização do rio São Francisco abaixo dos 1.300 m³/s causou também impactos de monta na ictiofauna: “o peixe sumiu…” é o bordão da margem. Operando vazões regularizadas em 550 m³/s (setembro de 2018) há vários meses (e num período de cinco anos com regularização abaixo de 1.300 m³/s), o processo de eutrofização do São Francisco está sem qualquer controle, com plantas aquáticas macrófitas e algas verdes invadindo todas as zonas onde a velocidade da correnteza é praticamente nula como as margens, áreas sobre bancos de areia.

Nota 03 – O baixo São Francisco do século 21, portador de um passivo socioambiental incalculável (em 2019 as operações de Sobradinho, que eliminaram os ciclos naturais das cheias, completam 40 anos), fruto da regularização insensata, é assolado pela erosão, cujo material carreado das margens tanto da calha do rio como de seus afluentes – que não contam com a devida proteção de matas ciliares existentes, na maior parte da região – vai se acumulando em seu leito em processo contínuo de assoreamento.

Nota 04 – Uma das marcas que esta leva de colonizadores aqui deixou, inclusive como registro das primeiras divisões de ocupações fundiárias são as seculares cercas de pedra, visíveis, no Sergipe, a partir de Nossa Senhora de Lourdes e em Alagoas, a partir de Traipu. Sem qualquer mecanismo de proteção – por parte de órgãos de estado , estes quilométricos muros de pedras arrumadas de forma precisa, solenes, vêm sendo gradativamente transformados em alicerces de construções contemporâneas. Estas cercas de pedra, que abrigavam as cabeças de gado deixadas como reserva para as investidas sertão adentro, deram o apelido de Rio dos Currais ao Velho Chico.

Nota 05 – Podemos mencionar a subida dos armadores (proprietários de embarcações) sergipanos com suas canoas de tolda para o rio de cima, nas décadas de 40 e 50, que vieram provocar mudanças profundas na navegação e relações sócio econômicas nos trechos do submédio e médio São Francisco.  A carreira (rota) das canoas conhecidas, na época, como sergipanas, ia de Petrolândia a Barreiras, no rio grande, para citarmos o principal roteiro.

Nota 06 – Com a quebra da economia local – inteiramente vazanteira até o final dos anos 80 – quando Sobradinho entra em operação, a atividade da pesca passa a ser uma opção. É um caminho que irá ser seguido por inúmeros homens sem lugar nos perímetros irrigados fracassados. As feiras ditas “de movimento”, hoje, se reduzem a Pão de Açúcar, Gararu, Propriá, Porto Real do Colégio, Penedo e na Ilha das Flores. Povoados ou sedes que tinham boas feiras, durante vários dias da semana, hoje são defuntos: Betume, Brejo Grande, Serrão, Piranhas Velha, para citar exemplos mais marcantes .

Nota 07 – A navegação à vela é hoje relegada aos mais velhos, que ainda apreciam – ou não têm outra opção de propulsão para seus barcos – a arte. O Baixo São Francisco é hoje infestado pelos motores de rabeta, que são, sim, a mecanização de uma pesca até então artesanal. Tal forma de propulsão é largamente fomentada pelos programas oficiais de assistência social e ditos de incentivo à pesca. A arte dos mestres veleiros se resume a um punhado reduzido de artesãos, cuja maior produção é para as canoas de corrida.

Nota 08 – Com a queda da navegação de longo curso – as carreiras da praia ao sertão -, da falta das madeiras de lei (as matas foram devastadas para a pecuária, agricultura, para a construção civil e naval, além de serem queimadas nas fornalhas dos vapores), também a carpintaria naval sofreu transformações. Os mestres tradicionais, de embarcações rombeadas (de cascos redondos, onde os enormes pranchões eram esculpidos) perderam sua função (como os objetos, as canoas, que sabiam fazer) e não foram, naturalmente, seguidos por seus filhos ou ainda aprendizes. Sem madeira para tal tipo de técnica, as embarcações passaram a ser construídas com cavernas feitas em barrotes (e não mais lavradas a machado e enxó na braúna ou jaqueira) e os cascos em tábuas. Há uma série de estaleiros estabelecidos em Pão de Açúcar, Colégio, Propriá, Neópolis, Penedo e Piaçabuçu. Porém há um grande numero de mestres que vão onde está o serviço.

Nota 09 – Com a operação da barragem de Xingó, em 1993/4 o Baixo teve seu caminho natural para a piracema interrompido. E, com a regularização e as operações hidráulicas regidas para a produção de energia, prioritariamente, o São Francisco, no seu trecho baixo, hoje tem seu ciclo de vazões invertido.

Nota 10 – Com os problemas da desaparição do caranguejo uçá e da pesca predatória do guaiamum, hoje é pequeno o número de pessoas que ainda se dedicam à cata destes mariscos que, sem a devida proteção das espécies e a permanente pressão de mercados compradores sobretudo nas capitais, muito provavelmente, estão com seus dias contados.

Nota 11 – Nos dias de hoje, com a situação hídrica crítica, além de quarenta anos de regularização, o passivo socioambiental dos barramentos e péssima gestão do território configura o desastre das políticas públicas.  Como nas demais regiões fisiográficas da bacia hidrográfica do São Francisco, a implantação e gestão dos perímetros de irrigação no Baixo São Francisco é a cargo da CODEVASF – Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba (empresa criada para mitigar o fim dos ciclos naturais do São Francisco a jusante da barragem de Sobradinho com a implantação de projetos de perímetros de irrigação). A várzea da Marituba é alvo de severas críticas, os distritos da Boacica e Itiúba, em Alagoas, Betume, Propriá, em Sergipe, são grandes fracassos. Iniciativa do estado de Sergipe, o perímetro do Platô de Neópolis, produz cana de açúcar e grama irrigadas, ao invés de alimentos, com grande concentração de riqueza e uma crônica má distribuição e aplicação dos recursos fundiários.

Nota 12 – Lampião, Maria de Déa e parte de seu bando foram chacinados em 28 de julho de 1938 na grota do Angico, no Poço Redondo, SE .

Nota 13 – Um testemunho da passagem do Conselheiro pelo Baixo São Francisco, mais precisamente pelo povoado Curralinho, no município sergipano do Poço Redondo, é a pequena capela ainda hoje de pé. Ocorreu a sua notificação ao IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional para seu tombamento.

Nota 14 – A poluição das águas no Baixo São Francisco não são privilégios desta região. A grande maioria dos 507 municípios da bacia ainda lançam seus resíduos líquidos sem qualquer tratamento no rio. E, as perspectivas para o real saneamento dos efluentes não é animadora. Com a regularização (a jusante de Sobradinho) abaixo do valor mínimo de 1300 m³/s estipulados pelo Plano de Bacia, desde o início de 2013 sem a devida redução das outorgas e lançamentos de águas servidas (efluentes líquidos, esgotos, agrotóxicos de perímetros irrigados, etc.) a situação em 2018 é dramática e, efetivamente, é visível o impacto nos diversos sistemas aquáticos na região.

Nota 15 –  A navegação no Baixo São Francisco está prejudicada, profundamente, pelo assoreamento e pelas “marés” provocadas pelas operações hidráulicas nas barragens. A partir do início de 2013, com a redução das vazões regularizadas abaixo de 1.300 m³/s, o processo de assoreamento teve incremento e se acelerou. No segundo semestre de 2018, com vazões da ordem de 570 m³/s, a navegação de longo curso está inviável para embarcações com calado superior a 1,00 m.

Nota 16 – Estudos realizados já no início do século 21, pela UFAL – Universidade Federal de Alagoas, já comprovavam não só o avanço da zona com maior influência do mar, a “cunha salina”, mas também a salinização extrema dos solos das antigas lagoas de arroz. Em meados de 2018, após cinco anos de vazões regularizadas em patamares ínfimos, a situação na região da foz é dramática: a salinização da água avançou consideravelmente, comprometendo o abastecimento de água nos municípios de Brejo Grande, SE e Piaçabuçu, AL, inclusive provocando situações vinculadas à saúde coletiva. Há inúmeros casos de pessoas com hipertensão arterial pelo fato do consumo de água com altos valores de cloreto de sódio, acima dos padrões adequados para a potabilidade.

Nota 17 – Os grandes manguezais da margem sergipana da foz estão sendo violentamente destruídos pelos tanques para a criação de camarões (a carcinicultura), sem qualquer fiscalização e remoção; pelo aumento dos coqueirais; pela reativação de poços produtores de petróleo e ocupações fundiárias irregulares. Há ainda a introdução insensata de gado bubalino (búfalos), com incentivo de órgão governamentais.

Veja, leia:

Neves, Zanoni – “Remeiros do São Francisco: barqueiros da Integração;

Luis Mott –