Da primeira e marcante visão da canoa Luzitânia em dezembro de 1997, são vinte essenciais anos de convivência com a embarcação símbolo do Patrimônio Naval do Baixo São Francisco.

Nesta quarta parte, temos a terceira inundação do estaleiro no Mato da Onça e a remoção da canoa para Brejo Grande, SE, na foz do rio.

Carlos Eduardo Ribeiro Junior

Publicado em 19 de abril de 2019

2005

A operação da barragem seguiu rigorosamente o procedimento de total falta de comunicação com as populações a jusante de Xingó. As populações não foram alertadas, sobretudo aquelas mais isoladas, preparadas e não tiveram como efetuar qualquer ação preventiva. Como em 2003 e 2004, a água subiu rapidamente no Mato da Onça e inundou completamente, pela terceira vez, o estaleiro da Luzitânia. Novo fim, novo recomeço.

Imagem | Canoa de Tolda

Para não ser arrastada, a Luzitânia foi atracada com cabos à estacas, árvores. O restante do material, como peças de madeiras, pranchões, ferramentas, equipamentos, teve que ser realocado de última hora, com muita dificuldade. Porém, o prejuízo seria considerável.

Imagem | Canoa de Tolda

O casco da canoa já se encontrava em processo de colagem, o que possibilitaria a flutuação da embarcação caso fosse finalizado. A abertura das comportas e a acelerada inundação não permitiu. O trabalho podia ser considerado como perdido.

Imagem | Canoa de Tolda

O que foi possível de salvamento foi arrumado na margem mais alta. O estaleiro, com suas estacas, cabos e cobertura foi inteiramente destruído. No entanto, há que se deixar claro que em momento algum a visão das cheias – no caso tínhamos uma enchente provocada por uma situação clara de gestão dos reservatórios – seria alterada para considerá-las algo maléfico, uma praga, um flagelo, como sempre vendida pelos porta vozes do rio oficial.

Imagem | Canoa de Tolda

Sempre sem qualquer comunicação por parte dos operadores da barragem, a CHESF, a situação era completamente insegura. Não era conhecida, naquele – e como em outros momentos anteriores – quando a vazão voltaria ao patamar anterior à operação de abertura das comportas. A falta de informações e o abandono por parte dos entes públicos era completa.

Imagem | Canoa de Tolda

2004

Não havia mais como nossa estrutura permanecer no Mato da Onça. Naquele momento era necessário buscarmos um local seguro, com facilidade de remover a canoa para terra. Foram feitas solicitações de ajuda para o resgate e reboque (a remoção do Mato da Onça) da Luzitânia junto à Petrobras e à Codevasf. Que alegaram não terem recursos para tal (empresas que contam equipamentos adequados para tal operação, como guindastes, carretas). A solução viria de um companheiro nosso, filho de canoeiro, que não deixando a conversa findar colocou: “vamos pegar aquela canoa, não pode se acabar assim…” Zé da Balsa.

Imagem | Canoa de Tolda

Assim foi. O companheiro e amigo balseiro, de Piaçabuçu, Zé da Balsa de Tonho Carmelo, dos Escuriais, povoado de Lourdes, sertão sergipano, foi positivo: ” apois… arranja o óleo que o Baixinho (o outro irmão que fazia linha com a lancha do finado pai, entre Escuriais e Propriá) vai lá pegar a canoa. Qual o dia?…pronto…estaremos lá, pode contar com nós…” No dia marcado, depois de prepararmos a Luzitânia com antecedência – foram instalados tambores vazios de 200 litros para auxílio à flutuação na proa, a lancha Luz do Dia chegou ao Mato da Onça.

Imagem | Canoa de Tolda

A bordo da Luz do Dia, além de Baixinho, Elísio, marinheiro, Zé da Balsa e Seu Alcides, ferramenteiro de Piaçabuçu. Para o interior da lancha embarcamos todo o material da obra: madeiras, gerador, ferramentas, a estrutura do estaleiro. Pouco a pouco a Luz do Dia se enterrava na água, carregada, pesada. E Zé da Balsa, “embarque sem medo, essa lancha é cargueira, e viemos bater aqui pra resolver o rolo, vai tudo…”

Imagem | Canoa de Tolda

E, sobre a capota da lancha, um triciclo tipo lambreta, de seu Alcides, que foi utilizado por ele e Zé da Balsa para a viagem de Piaçabuçu aos Escuriais, de onde subiram para o Mato da Onça. E assim, por ora, a bagaceira tomava uma perspectiva de ter um espaço para respirar. Mas ainda longe do fim.

Imagem | Canoa de Tolda

Foi uma difícil partida do Mato da Onça. A casa ficava para trás, ilhada no mundo de belas, imensas e espalhadas águas, e a pequena população no beiço do rio, melancólica, assistia a partida. “a canoa não volta mais, não”… Com o rio cheio, a Luzitânia afundada, apenas os arcos da tolda e o bico da proa de fora, sustentada pelas boias, puxamos para baixo. Passando por cima de tudo, com a carreira forte ajudando, mas a maroada formando, o vento começando a cair pesado. Proa para a praia.

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Tudo o que tínhamos, dos anos anteriores diretamente ligados ao esforço de salvar a Luzitânia estava ali dentro da Luz do Dia. Como também íamos com muitas e muitas dúvidas sobre o futuro. Tudo a recomeçar, em local estranho, nova estrutura a ser montada, sem dinheiro para tocar a obra. Enfim, ou isso, ou o final da linha.

Imagem | Canoa de Tolda

A saída tardia do Mato da Onça, era muita carga a embarcar, nos fez encarar o tempo fechado, vento forte, causando várias dificuldades iniciais no reboque da Luzitânia. A maroada de leste, batendo pesado, rompeu várias amarras que tiveram que ser refeitas inúmeras vezes. Como já chegava a boca da noite, era necessário parar, descansar e reorganizar o sistema de reboque. Ainda havia muita água pela proa e a viagem deveria ser realizada com a melhor segurança.

Imagem | Canoa de Tolda

O porto foi dado na Vila Limoeiro, derradeiro povoado de Pão de Açúcar. Muitas pessoas vieram ver a canoa, conhecidos, amigos, curiosos. “há tempo que eu não via uma canoa de tolda…é a Luzitânia…”. Foi feito um fogo, o café preparado, a canoa esperando ali, encostada no barranco, seu destino.

Imagem | Canoa de Tolda

Na manhá seguinte, cedo, o sistema de reboque – as amarras –  melhorado, com tábuas amarradas na popa da canoa para servir de leme e uma viga de madeira na proa, estruturando um cabresto, a viagem seguiu. Para não parar, onde era possível, e com a lancha de alumínio de apoio, era feita a compra de óleo diesel em terra para o abastecimento em movimento. A lancha ia até terra – enquanto isso a Luz do Dia prosseguia, puxando a Luzitânia – a gasolina era comprada, embarcada e tomava-se o rumo para alcançar a caravana.

Imagem | Canoa de Tolda

Com o rio cheio, a correnteza correndo forte, a lancha e a canoa seguiam sem problemas, por cima de croas, terrenos, cercas. Tudo era carreira, como dantes – e vinham as imagens, no sentido, das canoas e navios no movimento, como não ter isso na cabeça? Rio cheio, viagem ligeira.

Imagem | Canoa de Tolda

Apesar da carga ocupando todo o interior da Luz do Dia, foi possível todo o pessoal se acomodar de forma razoável, cozinhar. Sem problemas. Os ânimos estavam positivos, apesar de todos um pouco fatigados. Mas era clara a energia que a canoa, aquela canoa velha, que carregara o senhor do cangaço, que transportara tanta gente, carga, nesse rio, estava no ar o pulso que motivava aquela movimentação para a sua permanência na margem.

Imagem | Canoa de Tolda

A viagem, configurando um período de muitas dúvidas sobre o futuro, permitiu muita reflexão sobre o esforço despendido para não perdermos a Luzitânia. Teríamos que, de alguma forma, reivindicarmos junto à CHESF algum tipo de reparação pelos prejuízos que eram consideráveis. Não tínhamos dinheiro para advogados, teríamos que nos valer de nosso esforço, como assim fora no caso da resistência à barragem de Pão de Açúcar.

Imagem | Canoa de Tolda

E a viagem prossegue, praticamente sem parar, a não ser pela noite, quando não havia possibilidade de navegação. Pelas margens, grande número de pessoas aglomeradas, acompanhando o rojão da Luzitânia. Não deixava de ser um acontecimento.

Imagem | Canoa de Tolda

As águas toldadas do São Francisco, águas com cor quase esquecida, a cor bonita do que foi, do que deveria ser o rio vivo, mesmo sem garantir visibilidade, não era problema. Com o grande volume de água correndo pela calha, praticamente de um lado ao outro, a carreira era franca. Sem medo.

Imagem | Canoa de Tolda

Nos três dias de viagem, apesar do aperto no interior da Luz do Dia, a vida seguia com alegria, uma vez que uma solução fora encontrada para o problema de continuidade do restauro da canoa. Brejo Grande em Sergipe, na foz do rio, por sua configuração de localidade baixa, foi escolhida como base para a continuidade do restauro.

Imagem | Canoa de Tolda

Finalmente no porto de Brejo Grande, onde a canoa seria retirada fora da água e acomodada em um estaleiro provisório, para o término do restauro. Nesse meio tempo, com nossa permanência constante no escritório da CHESF no Recife, finalmente, um acordo foi estabelecido com a empresa, que repassaria recursos e logística de apoio para o término da obra. Também foi organizada, com a prefeitura de Brejo Grande, autorização, através de alvará de instalação, para a construção do estaleiro provisório junto ao porto. Conhecendo o sistema terrível das relações dos poderes públicos com a sociedade, era preciso termos todas as garantias legais de que teríamos, ainda que por tempo limitado, alguma tranquilidade para recomeçar.

Imagem | Canoa de Tolda

Imagem em destaque no topo – Na noite do São Francisco, quando possível, a viagem seguia, mas os olhos cravados na Luzitânia, acompanhando seu comportamento. Imagem | Canoa de Tolda