Da primeira e marcante visão da canoa Luzitânia em dezembro de 1997, são vinte essenciais anos de convivência com a embarcação símbolo do Patrimônio Naval do Baixo São Francisco.

Com a terceira parte, seguimos, com  o registro de imagens do que foi vivido, com mais um pouco da história da canoa Luzitânia desde sua aquisição pela Canoa de Tolda.

Carlos Eduardo Ribeiro Junior

Publicado em 14 de abril de 2019

2003

O ajuste da peça do colo é dos mais difíceis. Uma tábua espessa, larga, é lavrada até chegar às cavernas. Nas mãos de um mestre como Nivaldo Lessa, uma folha de papel não passa entre caverna e colo. Mas, aperta aqui. rebate acolá, é hora duma fumaça de pacaio, uma puia, uma fuleiragem para animar, e o rojão prossegue.

Imagem | Canoa de Tolda

No final de 2003, um exemplo de como funcionam as operações de barramentos no São Francisco. Uma situação hidrológica particular no sub-médio provocou uma cheia pontual de alguns dias no Baixo São Francisco e parte da região de Itaparica. A CHESF operou a abertura dos vertedouros de Xingó sem o preparo das populações abaixo da barragem. Em poucas horas o nível subiu vários metros inundando e destruindo o estaleiro da Luzitânia. Amarrada a estacas para não descer o rio, a canoa resistiu.

Imagem | Canoa de Tolda

A cota do nível do São Francisco atingiu os alicerces de nossa base, que ficou isolada – mas, remetendo aos bons tempos das cheias dos ciclos naturais, de meses – naquela imensidão de água. Uma maravilha, confirmando que a denominação de calamidade é o carimbo do rio “oficial” para mais um argumento de justificativa do progresso advindo da regularização. “Dominar o flagelo das águas violentas que tudo destroem.”

Imagem | Canoa de Tolda

Sem o preparo das populações ao longo das margens, incluindo o Mato da Onça, e sem qualquer comunicação por parte dos operadores dos barramentos, o que se podia fazer, naquele momento, era voltar todos os esforços ao nosso alcance para salvamento de todo o material da Luzitânia: madeira, ferragens, pranchões de madeira, resina, as lonas de cobertura, ferramental.

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A canoa ali, naufragada, o estaleiro destruído, tudo agora era duvida, incerteza quanto a seguir com o restauro da Luzitânia. Quando a água voltaria, como faríamos tudo novamente, com que dinheiro, e os estragos, as sequelas? Mal sabíamos que aquela situação era apenas uma preliminar do que ainda seria vivido outras vezes, com prejuízos cumulativos, maiores.

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2004

Em fevereiro de 2004, com a Luzitânia submersa por quase dois meses, as águas se foram e fica o resultado, dentre tantos outros impactos ao longo do Baixo, de um sistema de operações de barramentos que nunca contemplou as populações a jusante de Sobradinho ou de Xingó. A canoa no chão, inteira, felizmente sem maiores danos a não ser a madeira encharcada, aguarda a retomada dos trabalhos. O estaleiro deveria ser reconstruído integralmente. Para a retomada dos trabalhos de restauro, pelas dificuldades de falta de dinheiro, estrutura e equipamentos, não tínhamos como estabelecer uma previsão sequer provisória.

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Porém, a pulso, havia que se refazer o estaleiro, remontar a estrutura, fazer a contabilidade do prejuízo material. O atraso do restauro agora era secundário. Ao menos a canoa estava ali. O fôlego para uma respirada agora era a ingênua tranquilidade para os eventos futuros que testariam, mais uma vez, a paciência, a resistência das populações ribeirinhas, entregues à própria sorte. Mesmo após o evento, a CHESF manteve o padrão de relacionamento com as pessoas das margens, que não contaram com qualquer esclarecimento in loco.

Imagem | Canoa de Tolda

No segundo semestre de 2004, após grande dificuldade, o estaleiro da Luzitânia é remontado e os trabalhos prosseguem gradativamente. As águas voltaram ao padrão da vazão regularizada, porém os prejuízos não foram ressarcidos.

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A vida no estaleiro, no entorno da Luzitânia, vai se reacomodando, o serviço toma o rojão de seu ritmo e aos poucos o trabalho avança. Porém, foram muitos meses de retardo, que iriam para a contabilidade final do tempo dedicado à recuperação da canoa. Era, no entanto, ponto pacífico: sabíamos que voltaria a navegar.

Imagem | Canoa de Tolda

Com o taboado do casco inteiramente fechado, a principal preocupação, naquele momento, era deixa-lo em condições de flutuação, no caso de algum outro problema de operação de barragens. Sabíamos que com a chegada das trovoadas de verão, havendo precipitações mais fortes na região do sertão de Itaparica, muito provavelmente ocorreriam operações dos barramentos que provocariam novas defluências repentinas, com vazão elevada.

Imagem | Canoa de Tolda

É iniciado o trabalho de colagem das juntas (chamadas de costuras, normalmente calafetadas com uma massa de cal e óleo de mamona) com resina epóxi e uma carga de micro fibras de madeira e micro esferas de vidro. Esse procedimento foi comunicado ao IPHAN (ao longo de todo o restauro, sempre encaminhamos relatórios das nossas atividades, mesmo antes do tombamento da embarcação)  provocou, por parte de um “especialista” do órgão (as haspas são nossas) um documento declarando que iríamos desfigurar a canoa e recomendando de forma veemente a interdição do trabalho… Segundo o cidadão, estávamos a utilizar material não tradicional. Será que nas obras das igrejas e forte seculares o órgão utilizaria óleo de baleia amalgamado à cal vinda da queima de conchas escavadas de sambaquis?

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O casco da Luzitânia está em sua forma original, recuperada a partir da manutenção das cavernas antigas que eram substituídas gradativamente por outras com o mesmo formato. E, a fatal colagem “comprometedora” das características da canoa prossegue, com mestre Nivaldo achando muita graça das considerações do especialista: “apois, chame esse cabra prá trabalhar mais nóis e quem sabe ele aprende alguma coisa de canoa…” Apois.

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O ano de 2004 vai correndo, o trabalho vai seguindo e a Luzitânia vai tomando forma, como sua tolda, tendo os primeiros arcos montados. Estamos mais animados, mais próximos de ver a canoa navegando – próximos de algo ainda um pouco distante, porém já com uma esteira deixada para trás.

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Ainda que com muita peleja pela proa, a possibilidade de um término do casco em futuro não tão distante permitia, nas noites dormidas ali ao relento, no fundo da canoa, as conversas de navegações futuras imaginárias: Mestre Nivaldo, Abel Aleijado, Mané do Bebedô, cada qual na sua esteira, o foguinho dos cavacos de madeira no braseiro que faria o café na madrugada.

Imagem | Canoa de Tolda

No inicio de 2005, em mais uma operação de barramentos sem preparo da população, a CHESF aumenta rapidamente a vazão do rio a jusante de Xingó. O Baixo São Francisco é atingido a  por uma enchente rápida que, pela terceira vez, viria a detonar o estaleiro provisório da Luzitânia. A terceira visão da canoa naufragada seria o teste definitivo para os limites do que poderíamos suportar, junto com as demais pessoas espalhadas pela região, de um sistema de gestão de águas que ignorou, ignora e sempre ignorará uma imensa população difusa que apenas conta com um passivo socioambiental que não para de aumentar.

Imagem | Canoa de Tolda

Imagem em destaque no topo – O estaleiro da Luzitânia, reconstruído após as operações de barramentos em 2004. Imagem | Canoa de Tolda